Incêndio da boate Kiss chega aos 10 anos sem punições ou perspectiva de novo júri
As partes envolvidas divergem tanto sobre os motivos que levaram a uma década de impunidade quanto sobre o melhor caminho para que a Justiça possa ser feita
Passados dez anos do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS), completados nesta sexta-feira (27), não há ninguém condenado criminalmente pela tragédia que matou 242 pessoas e feriu mais de 600 em 2013.
Em 3 de agosto de 2022, por 2 votos a 1, os desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça gaúcho anularam o júri que havia condenado meses antes quatro réus pela tragédia: os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann; um músico, Marcelo de Jesus dos Santos; e um auxiliar de palco, Luciano Bonilha Leão. As penas anuladas variavam entre 18 anos e 22 anos e seis meses de prisão.
O júri, realizado em dezembro de 2021, foi o maior história do Rio Grande do Sul e, conforme o magistrado Orlando Faccini Neto, realizado com particular esforço para não dar margem a anulação.
As defesas contestaram o sorteio de possíveis jurados a menos de 15 dias do julgamento e alegaram “disparidade de armas”, pois a Promotoria teria tido acesso ao banco de dados do governo do Estado para analisar o histórico dos integrantes. Uma reunião do juiz somente com os jurados, sem representantes das defesas, também foi citada.
As partes envolvidas divergem tanto sobre os motivos que levaram a uma década de impunidade quanto sobre o melhor caminho para que a Justiça possa ser feita.
Pai de uma das vítimas e diretor jurídico da associação em memória da tragédia, Paulo Tadeu Nunes Carvalho afirma que a primeira grande falha do processo ocorreu ainda em 2013, quando o Ministério Público à época ofereceu denúncia sem a responsabilização dos entes públicos, que permitiram que a Kiss estivesse funcionando fora dos padrões de segurança.
A denúncia principal ficou centrada nos quatro réus que seriam processados por homicídio com a tese do dolo eventual (quando se assume o risco de matar) e seriam levados a júri popular. Os demais nomes listados no inquérito policial à época responderiam a processos administrativos, na esfera civil ou na Justiça Militar.
Dois bombeiros foram condenados pelo Tribunal de Justiça Militar a penas de um ano e um ano e três meses de reclusão e os outros seis foram inocentados. Quatro foram condenados na Justiça comum em segundo grau a penas menores. Como em todos esses casos ainda cabe recurso, a execução das penas não foi iniciada.
“Esse é o primeiro ponto-chave desse longo e terrível processo. Essa decisão [de não processar agentes públicos criminalmente] causou conflito entre as famílias e o MP [Ministério Público]. E as defesas dos réus se aproveitaram para dizer que os culpados eram os entes públicos, mas uma coisa não inviabiliza a outra”, diz Carvalho.
Em um desdobramento que revoltou a opinião pública à época, cinco pais se viram processados antes mesmo dos responsáveis pelo incêndio, acusados de injúria e difamação, por comentários sobre o caso. Os casos foram encerrados ou porque a Justiça não aceitou as denúncias ou porque resultaram em absolvições.
“Acredito que o Ministério Público, como instituição, nunca deixou de cumprir sua função adequadamente nesse caso. Os processos contra os pais foram decisões de promotores lá de Santa Maria que, compreendendo que havia uma ofensa à honra pessoal deles, buscaram judicialmente que os atos cessassem”, diz o subprocurador-geral de Justiça para assuntos institucionais no RS, Júlio César de Melo.
Conforme Melo, a estratégia da Promotoria, agora, será tentar reverter a anulação do júri em recursos ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça. Atualmente, o Tribunal de Justiça aguarda a apresentação das contrarrazões das defesas dos réus para admitir ou não o recurso às Cortes superiores, o que deve ocorrer até fevereiro.
A Promotoria argumenta que nenhum ato realizado no julgamento gerou prejuízo às defesas.
Para Jader Marques, advogado de Elissandro Spohr, a instituição “perde tempo” ao insistir em recursos contra a nulidade quando deveria viabilizar um novo júri ainda neste semestre. Ele contesta a realização de júri popular para o caso, que ele vê como uma estratégia de isentar responsáveis do poder público, inclusive a própria Promotoria, dado que as irregularidades no funcionamento da Kiss eram conhecidas pelas autoridades.
“Uma acusação de incêndio com resultado morte produziria penas consideráveis, haveria um julgamento consideravelmente mais rápido, sem necessidade de júri popular e numa condição em que a própria acusação é mais correta, porque diz respeito ao incêndio que provocou as mortes, e não a um querer ou não as mortes”, diz Marques.
Ele cita o caso da boate argentina República Cromãnón, em que 194 pessoas morreram em dezembro de 2004. Foram responsabilizadas criminalmente pelo incêndio 28 pessoas -14 foram presas, incluindo funcionários do governo de Buenos Aires. O prefeito foi destituído e ficou inelegível por dez anos. O julgamento três anos e meio após o incêndio.
Para as famílias e sobreviventes, a sensação de alívio com o resultado do júri se esvaiu com a anulação e deu lugar a perplexidade, inconformismo e, sobretudo, exaustão. Agora, esperam que séries de TV que relembram o caso e reportagens façam que o tema volte a ter visibilidade.
“Eu não posso aceitar o que fizeram e o que estão fazendo para nós. Esse 3 de agosto [data da anulação] acabou comigo. Não me pergunte o que eu disse, no dia, porque eu fiquei cega”, diz Maria Aparecida Neves, 64, mãe de Augusto César Neves, uma das vítimas.
INVESTIGAÇÃO APONTOU SUCESSÃO DE FALHAS
Naquela madrugada de 27 de janeiro, 242 morreram, a maioria asfixiada por gases tóxicos liberados pela queima do revestimento de espuma instalado irregularmente no local e que foi atingido pelas chamas de um artefato pirotécnico acendido no show da banda Gurizada Fandangueira.
Spohr, conhecido como Kiko, e Hoffman, foram responsabilizados por terem usado nas paredes e no teto da boate a “espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso” que, ao pegar fogo, liberou o gás tóxico.
A acusação da Promotoria contra os dois sócios listava também irregularidades como manter “a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo”.
Quando as chamas começaram e a fumaça se espalhou, os extintores não funcionarem e não havia sinalização de saída de incêndio. Dezenas de vítimas morreram aglomeradas nos banheiros, cujas janelas eram vedadas, ou amontoadas aos gradis que dificultavam a saída da boate.
Vocalista e auxiliar de palco da banda, Santos e Leão, foram responsáveis por adquirirem e acionarem os fogos de artifício “que sabiam se destinar a uso em ambientes externos” e por terem saído do local “sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação”, segundo a denúncia.
Por Cauê Fonseca