Fortaleza ganha lei que cria campanha contra aborto e anticoncepcionais
No fim da tarde de terça, após o decreto, Nogueira comentou a decisão em uma transmissão ao vivo pela internet
Uma lei aprovada em Fortaleza propõe “campanhas publicitárias e informativas” contra o aborto e o uso de anticoncepcionais.
O texto, que passou pela Câmara de Vereadores da capital do Ceará, foi sancionado no último dia 9 pelo prefeito Sarto Nogueira (PDT), que é médico ginecologista e evangélico.
Depois de críticas nas redes sociais, o prefeito disse na sexta (10) e na segunda (13) que não irá pela prefeitura criar peças publicitárias sobre os dois temas.
Mas, na terça (14), a gestão Sarto Nogueira publicou decreto sobre “ações e atividades públicas municipais que venham a ser adotadas em contribuição à Semana pela Vida”. O documento, no entanto, não detalha que ações a prefeitura promoverá.
No fim da tarde de terça, após o decreto, Nogueira comentou a decisão em uma transmissão ao vivo pela internet.
“É importante que fique claro: essa lei não obriga o município de Fortaleza a fazer qualquer tipo de campanha, e não temos nenhuma previsão de realizar campanha dessa natureza”, afirmou.
“A minha posição como médico é bem clara e quero deixar clara para todos que estão nos escutando. Na posição de médico ginecologista, já receitei uso de contraceptivos. Tem métodos comprovadamente eficazes e seguros”, disse ainda.
Atualmente, a legislação brasileira autoriza o aborto em casos específicos -de estupro, risco de morte da mãe ou quando o bebê é anencéfalo, defeito na formação do sistema nervoso central do feto.
Em relação aos anticoncepcionais, que chegaram ao Brasil no início da década de 1960, o SUS (Sistema Único de Saúde) disponibiliza oito tipos de contraceptivos gratuitamente.
As opções vão da camisinha ao DIU (Dispositivo Intrauterino). Também são realizados na rede pública procedimentos cirúrgicos de laqueadura, vasectomia e esterilização masculina.
A lei 11.159, em tramitação desde 2017, é de autoria do vereador Jorge Pinheiro (PSDB), da comunidade Shalom, ligada à renovação carismática da Igreja Católica.
Ela cria a “Semana pela Vida”, permitindo “campanhas publicitárias e informativas” contra o aborto e o uso de anticoncepcionais.
Pelo texto da lei, essa semana deve ser de promoção de “campanhas publicitárias, institucionais, seminários, palestras e cursos” sobre gestação e cuidados com o parto.
Também cita campanhas “contra a prática do aborto, mediante o convênio com organizações que ofereçam suporte psicológico, social e médico a gestantes, bem como orientações dos malefícios do aborto à mulher, sem qualquer promoção da prática ou de seus supostos benefícios ou facilidades”.
Em outro trecho, a lei sugere “campanhas de informação a respeito dos malefícios médicos e psicológicos da utilização de anticoncepcionais”.
O texto cita ainda “o reconhecimento público de entidades que atuem na luta contra o aborto e em defesa da vida em todos os seus estágios, desde a fecundação até o seu ocaso natural”.
Nas redes sociais, o prefeito recebeu críticas tanto de apoiadores quanto de movimentos feministas. Alguns comentários intitularam-na como “lei de The Handmaid’s Tale”, em alusão à série de televisão dos EUA sobre um regime opressivo contra mulheres, baseada no livro “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood.
Para o Coletivo Juntas, grupo que se manifestou contra o prefeito, a lei é “absurda e retrocede em décadas as lutas e avanços dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas e mulheres em nosso país”.
“Não bastando fortalecer a criminalização do aborto, [a lei municipal] avança para retroceder a legislação atual, colocando uma régua moral e completamente irracional, que se aproxima ao negacionismo científico, e ignora que, na verdade, esse debate deve ser de saúde pública”, escreveu o grupo.
“E ainda ignora que não deve caber ao Estado, à igreja ou a entidades que atuam na luta contra o aborto’ determinar qual deve ser a decisão da mulher sobre seu próprio corpo”, completam.
Em resposta aos protestos, Sarto Nogueira, pelo Twitter, não comentou o teor da lei, mas afirmou que o município não fará as campanhas.
“O texto não determina ao Poder Executivo que promova eventos nem campanhas publicitárias sobre os temas abordados. Dessa forma, apenas estabelece a possibilidade, não havendo obrigatoriedade. A prefeitura de Fortaleza não está realizando campanhas dessa natureza e nem há previsão de realizá-las.”
Questionada pela reportagem sobre o motivo de ter sancionado uma lei que não é para ser cumprida, a assessoria do pedetista informou que “a lei apenas insere essa semana no calendário de eventos do município, mas não obriga a realização”.
“O texto tem caráter autorizativo. A realização ou não de ações nesse sentido é uma discricionariedade do prefeito. A lei nem sequer estabelece que as ações caberiam à prefeitura”, afirmam, em nota.
Durante as eleições de 2020, o prefeito utilizou a experiência na medicina como um dos diferenciais para buscar a vitória nas urnas.
“Quando voltei médico na periferia, ajudei muita gente a nascer. Estamos vivendo hoje um desafio inédito. Vivemos em um país cuja distribuição de renda ainda é muito desigual.
Tivemos que reforçar a área da saúde. Estamos passando por um momento de pandemia que trouxe muita dor e perdas. Nossa capacidade nos faz acreditar em um projeto cada vez mais humano”, disse, em seu primeiro programa eleitoral.
A religião foi ponto de influência nos votos em Fortaleza. Na semana que antecedeu o segundo turno, o vereador licenciado Elpídio Nogueira (PDT) denunciou o uso de notícias falsas contra Sarto, irmão dele.
“As pessoas estão indo para um vale tudo sem limites. No último domingo espalharam nas igrejas evangélicas um panfleto apócrifo, anônimo, dizendo: por que meu pastor não vota no Sarto. Essa é a maneira que pessoas que se dizem cristãs estão se envolvendo em uma campanha de baixíssimo nível”, falou no alto da tribuna em 25 de novembro.
Em texto dirigido a eleitores cristãos, o senador Eduardo Girão (Podemos), na mesma semana, disse que Fortaleza vivia uma “batalha espiritual”, colocando o candidato de Ciro Gomes (PDT) como “defensor do aborto, da maconha e da ideologia de gênero que visa erotizar as crianças”.
“Com a misericórdia de Nossa Senhora aos nossos conterrâneos fortalezenses, precisamos trabalhar -no limite de nossas forças- para que a verdade e a liberdade vençam dia 29, e que possamos ver Fortaleza não apenas continuar a ser a capital do Nordeste, mas também, finalmente, se tornar a capital nacional da vida!”, conclamava.
Procurado pela Folha de S.Paulo, o prefeito não se manifestou sobre o que pensa dos anticoncepcionais e do aborto.
Em 18 de agosto do ano passado, ainda como pré-candidato, em entrevista à Jangadeiro Band News FM comentou sobre o aborto legal de uma criança de 10 anos violentada pelo tio em São Mateus, no Espírito Santo.
“A minha opinião [sobre o aborto] é o que a legislação define”, disse. “O aborto é assistido em casos de estupro, de riscos à saúde materna que, nesse caso, eu creio que se somam, e em casos de inviabilidade fetal, quando o feto não sobreviverá após o nascimento.”
Por Iedídes Guedes