Flip 2021 resolve falar de plantas em sua guinada mais radical
Edição que começa em novembro terá equipe de cinco curadores e ainda não anunciou quase nada da programação
Era evidente que a Flip dava uma das guinadas mais bruscas de seus quase 20 anos de história ao anunciar, em agosto, duas grandes mudanças. A próxima edição, virtual como no ano passado, terá uma equipe de cinco curadores e não destacará nenhum autor homenageado, mas um tema.
“A Flip se transformou numa plataforma para lançar uma ideia para debate”, resume Hermano Vianna, um dos curadores da festa, em uma conversa exclusiva de toda a numerosa equipe com a reportagem.
Se o festival literário nunca escolheu explicitamente um assunto sobre o qual se debruçar, a edição que vai de 27 de novembro a 5 de dezembro resolveu destacar a relação da literatura com plantas e a floresta, além de prestar homenagem a líderes indígenas mortos pela Covid.
O diretor artístico da festa, Mauro Munhoz, afirma que antes só era possível entender qual era a linha geral de cada edição conforme ela acontecia diante dos olhos do público. “Este ano, pela força do contexto mais difícil que estamos vivendo, tomamos a decisão de que ela teria esse tema de antemão.”
Discutir o mundo vegetal num festival literário não é uma escolha nada óbvia. Logo se levantaram críticas de que um dos espaços mais prestigiosos de discussão de literatura estava, oficialmente, relegando essa arte a segundo plano. Em resposta a isso, os curadores sublinham que o tema das plantas sempre esteve nos livros, mas raramente enquadrado com o devido destaque.
Vianna aponta que, mesmo que o debate sobre a importância das plantas esteja pujante em campos como a filosofia e as artes visuais, na literatura ele ainda é periférico -e é aí que a Flip busca “um pioneirismo”.
“Ainda há uma centralidade do animal nos estudos literários, mas em Guimarães Rosa a onça anda ao lado do buriti”, exemplifica o antropólogo. “Eu brinco que ganhei uma nova biblioteca, com os mesmos livros, mas lidos por outro ponto de vista.”
Para a programação de debates, serão trazidos autores que dão protagonismo aos vegetais, seja na ficção, como o Alejandro Zambra de “Bonsai” e “A Vida Privada das Árvores”, ou na intelectualidade, como o agora revelado filósofo Stefano Mancuso, de “Revolução das Plantas”.
Mas são os únicos nomes divulgados até agora para a festa que começa daqui a pouco mais de um mês, uma demora que revela que o ritmo da organização deste ano tem sido mais atribulado que o normal.
Antes disso, haverá um ciclo de homenagem no Sesc que começa já na segunda-feira, dia 25, discutindo aspectos como as artes, a educação e a medicina indígena, com participação de nomes como Sandra Benites, Julie Dorrico e Carlos Papá. A programação deste ano, afinal, também quer dar projeção ao pensamento mais amplo que habita a floresta.
“Nós, povos indígenas, estamos sempre falando da floresta, da terra, do cosmo, do corpo, e talvez nunca tivemos oportunidade de falar tão forte e claro como está sendo nesse momento”, diz João Paulo Lima Barreto, doutor em antropologia e também curador do evento, que ressalta esta como uma oportunidade de colocar diferentes filosofias em diálogo. “Os conhecimentos indígenas sempre foram colocados como não ciência. Mas a Covid veio e disse que não é bem assim, que todo conhecimento tem sua importância.”
Não dá muito para apontar o que veio antes, a inovação no tema ou no formato de curadoria, já que uma coisa parece refletir a outra.
“Há menos competição que colaboração no mundo vegetal, e esse senso de coletividade tem a ver com a ideia da curadoria florestal”, afirma o terceiro curador, o pesquisador Evando Nascimento. “Cada um de nós é singular, com sua formação, mas há uma convergência de visões de mundo.”
Inegável que esse modelo também contorna o clamor público feito pela última curadora, Fernanda Diamant, no pedido de demissão em que exortou a Flip a apostar na diversidade escolhendo uma mulher negra para seu posto.
A busca por vozes diversas segue prioritária na organização do evento, segundo a curadora Anna Dantes, editora que fundou o Selvagem, Ciclo de Estudos sobre a Vida, com Ailton Krenak. “Queremos ser escuta das diferentes vozes, a questão da diversidade é de vida, de existência.”
Vianna, que coordena o trabalho do grupo, afirmara que ele é um “coletivo de coletivos”. E nessa organização rizomática, todos fazem coro à ideia de tirar o protagonismo não só de uma pessoa singular, mas do próprio ser humano. “Acho que na verdade a gente está sendo pautado pelo mundo vegetal, e não o contrário”, afirma Dantes.
“Dá para dizer que esta é uma edição especialmente encantada”, acrescenta Pedro Meira Monteiro, o quinto curador, professor de literatura da Universidade Princeton, para quem as plantas não estão ali para ser objeto, mas para deslocar os humanos e tomar o centro.
Curioso que uma Flip que dê tanta prioridade à discussão sobre terra e natureza -radicalizando uma tendência que sempre esteve presente na festa paratiense- vá acontecer na assepsia do ambiente virtual, pelo segundo ano consecutivo.
O repórter pergunta se há o temor de que o público, exausto de lives, não se anime a acompanhar a programação online de nove dias.
Munhoz, o diretor da festa, diz que a experiência da Flip fica de fato mais restrita sem o encontro pessoal e ressalva que haverá manifestações culturais gravadas em Paraty e pequenas sessões organizadas na cidade para assistir à programação.
Em consonância com o discurso do time de curadores, contudo, ele aponta que a pandemia veio mesmo para mostrar que não tinha cabimento continuar a viver como antes. “E ainda tem muita coisa para emergir da experiência dessa parada.”
Por Walter Porto