Dados defasados permitem que governo ganhe R$ 10 bi a mais com venda da Eletrobras, dizem empresas
Modelagem desconsiderou anos de crise hídrica; ministério afirma que informações são as mais recentes disponíveis
Os maiores geradores e os principais consumidores de energia encaminharam uma carta ao Ministério de Minas e Energia, BNDES e EPE (Empresa de Pesquisa Energética) para reclamar que a modelagem de privatização da Eletrobras considera dados que permitirão ao governo receber entre R$ 10 bilhões e R$ 20 bilhões a mais do que o devido no processo de venda de ações, previsto para o próximo ano.
Bancos de investimento que, nesse momento, avaliam se a Eletrobras privatizada é um bom negócio alertaram que há uma superavaliação causada pelo uso de dados apenas até 2019 -portanto, antes da crise hídrica.
Foram essas instituições que avisaram os representantes da indústria, grandes consumidores de energia, que se a atualização fosse feita com dados de 2020 e 2021, o valor total que a operação pode movimentar seria de R$ 10 bilhões a R$ 20 bilhões a menos.
Pelo modelo definido pelo BNDES, a União deixará o controle da estatal vendendo suas ações ao mercado na Bolsa.
A oferta inicial (primária) deverá ser de R$ 23,2 bilhões. Se não for suficiente, haverá uma nova rodada até que a participação do governo na empresa caia para 45%.
No entanto, a operação como um todo -que inclui a migração das usinas da Eletrobras para o “livre mercado”, um depósito de R$ 29 bilhões para amortizar o preço da energia, e os compromissos de investimento no rio São Francisco- deve movimentar cerca de R$ 150 bilhões, segundo projeções dos bancos. Ou de R$ 130 bilhões a R$ 140 bilhões, se a correção fosse feita.
A preocupação dessas instituições chegou aos geradores e grandes consumidores de energia da indústria representados pela Abrace (Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres), que assinam as cartas enviadas ao governo.
A reportagem teve acesso ao conteúdo do documento enviado pela Abrace em 22 de novembro ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, à EPE e ao BNDES.
Nela, afirmam que, na modelagem, foram usados dados de garantia física das usinas da Eletrobras somente até 2019. Entre 2020 e 2021, com a crise hídrica, essas hidrelétricas não só passaram a gerar menos energia (para preservar a água em seus reservatórios), como registraram redução de suas garantias físicas.
Garantia física é a quantidade de energia que uma usina consegue comercializar com certeza diante de sua potência instalada.
As usinas da Eletrobras operam em uma espécie de clube cujos integrantes respeitam as regras do chamado MRE (Mecanismo de Realocação de Energia). De acordo com ele, quando uma usina produz menos do que sua garantia física, pode comprar a energia de outra que produz a mais por um preço mais baixo do que o de mercado.
Se ainda assim essa energia não for suficiente para atender aos contratos firmados de fornecimento mínimo, passa a comprar energia de outras geradoras, como as térmicas, que geram a R$ 2.000 o MWh (megawatt-hora), quase dez vezes o que o preço de referência.
Segundo os bancos, houve uma superavaliação das garantias físicas das hidrelétricas pela EPE ao utilizar somente dados até 2019. É essa diferença que foi estimada entre R$ 10 bilhões e R$ 20 bilhões, caso fossem considerados os dados mais recentes.
Um dos geradores consultados pela reportagem sob anonimato afirma que a situação dessas usinas da Eletrobras é pior do que se imagina, e as demais geradoras [do MRE] estão preocupadas porque terão de arcar com essas diferenças. No entanto, esse gerador não soube precisar a real situação dessas hidrelétricas.
Os bancos de investimento fizeram chegar aos representantes da indústria que, entre 2020 e 2021, a crise hídrica reduziu ao menos 1.000 MW (megawatt) das usinas da Eletrobras.
Na prática, isso acarretará um aumento de valor para a estatal e, consequentemente, no valor das ações no momento da capitalização. O governo poderia, assim, ganhar mais dinheiro com a operação.
A EPE afirmou aos representantes do setor que utilizou os dados somente até 2019 porque os números mais recentes ainda não estavam disponibilizados pela ANA (Agência Nacional de Águas).
“Uma garantia física acima do valor correto dá à Eletrobras um ativo que tem o valor da diferença entre o preço de venda dessa garantia física adicional e o de aquisição dessa energia dentro do condomínio das usinas hidráulicas, utilizando o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE)”, diz a carta.
“Com isso a empresa terá mais valor, o que beneficia o governo, no aumento do valor de suas ações e do valor do bônus de outorga. O mesmo efeito de valorização se estende aos acionistas privados atuais da empresa.”
No documento, a Abrace considera que “o cálculo da revisão da garantia física das usinas da Eletrobras precisa refletir a realidade”.
Em outubro, a ANA editou duas resoluções que atualizam as séries históricas e projeções futuras da água disponível em 545 aproveitamentos hidrelétricos previstos ou em operação.
“Essas informações precisam ser consideradas. Se não forem [consideradas], podem trazer consequências importantes para o setor e promover o benefício de alguns segmentos em detrimento de outros.”
Segundo a carta, ao utilizar dados desatualizados, a capitalização da Eletrobras ajudaria o governo ainda a inflar o valor a ser destinado para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), usada para reduzir a tarifa aos consumidores sempre que há ganhos no sistema.
Projeções do BNDES indicam que essa conta deverá girar em torno de R$ 29 bilhões, suficiente para não causar “nem aumento, nem redução na tarifa” [após a privatização da estatal], segundo afirmou o presidente do banco, Gustavo Montezano, durante evento de anúncio da modelagem da privatização.
A indústria defende que os dados sejam atualizados. Caso contrário, os consumidores terão de arcar com os custos a mais de, futuramente, o sistema contar com cerca de 1.000 MW a menos de energia a ser comercializada.
“Novamente nossa preocupação é que a produção nacional não seja onerada com um custo, que deve ser entendido como um prejuízo de uma empresa que tem, afinal, maioria de seu capital no mercado e nas mãos de acionistas privados quando consideradas as ações com e sem direito a voto”.
Por meio de sua assessoria, a Abrace informou que está em contato com as autoridades competentes para buscarem uma forma de resolver o problema.
Ministério diz que dados eram os últimos disponíveis
Procurado, o Ministério de Minas e Energia disse que os dados utilizados no cálculo da garantia física das hidrelétricas da Eletrobras foram os mais atualizados disponíveis no momento da publicação da portaria que definiu as diretrizes da privatização.
“A metodologia aplicada às usinas da Eletrobras é a vigente e a mesma utilizada na última revisão ordinária de garantia física realizada em 2017 e nos cálculos de garantia física de novos empreendimentos de geração de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional (SIN)”, explicou a pasta por meio de sua assessoria.
Sobre a resolução da ANA com dados mais atualizados da situação das bacias hidrográficas, o ministério informa que a EPE “está interagindo com a ANA para verificar a aplicação de algumas séries de vazões de usos consuntivos”.
“Essa etapa de análise é necessária para que os dados de entrada para cálculo de garantias físicas reflitam as melhores informações disponíveis pela ANA.”
Por Julio Wiziack