Corte de água em hidrelétricas mata peixes e ameaça piracema
Problema é mais visível na hidrelétrica Porto Primavera, na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul
As primeiras semanas de redução da vazão de hidrelétricas no rio Paraná resultaram em grande mortandade de peixes nas regiões que passaram a receber menos água e geraram alertas sobre efeitos na piracema, o período de desova, que se inicia em novembro.
O problema é mais visível na hidrelétrica Porto Primavera, operada pela Cesp, na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul. Em um período de cinco semanas, equipes da empresa encontraram 2,3 toneladas de peixes mortos e resgataram 1,7 tonelada que estava em situação de risco.
Para ambientalistas e técnicos do setor, o cenário reflete a demora do governo para implantar medidas de economia no consumo de eletricidade, atitude batizada de “negacionismo energético” por especialistas do ICS (Instituto Clima e Sociedade).
Até agora, o enfrentamento à crise energética é focado no aumento da oferta e na gestão dos reservatórios, para que cheguem ao fim do período seco com volume suficiente para garantir o suprimento. As primeiras medidas relativas ao consumo devem começar a vigorar em setembro.
A prioridade são as hidrelétricas da bacia do rio Paraná, formado pelos rios Grande e Paranaíba, que concentram dois terços da capacidade de armazenamento de energia do subsistema elétrico Sudeste/Centro Oeste e estão hoje em estado de emergência hídrica.
Para poupar água nos reservatórios rio acima, a Creg (Câmara de Regras Excepcionais para Gestão da Crise Energética) reduziu a vazão das usinas de Porto Primavera e Jupiá, as duas últimas do Paraná antes de Itaipu.
A barragem de Porto Primavera está hoje liberando 2.900 metros cúbicos de água por segundo, mil a menos do que o volume considerado mínimo antes da crise energética. Jupiá está limitada a 2.300 metros cúbicos por segundo.
A Cesp diz que a mortandade atinge de forma mais intensa espécies amazônicas, que foram inseridas na região para fomentar o turismo de pesca e são mais vulneráveis às baixas temperaturas provocadas pela onda recente de frio no centro-sul do país.
Em relatório da fase 1 de monitoramento entregue à ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), porém, tanto a empresa quanto consultoria externa admitem que a redução de vazão pode ter agravado a situação, ao diminuir a profundidade média, isolar e secar áreas, contribuindo para uma queda mais intensa da temperatura da água.
Com barcos e redes de arrasto, as equipes de monitoramento da empresa conseguiram resgatar 9.872 peixes para fora dessas áreas nas cinco primeiras semanas de operação com a vazão reduzida, mas encontraram outros 10.853 já mortos, segundo resumo técnico da fase 2 de monitoramento entregue à ANA.
O presidente da colônia de pescadores Z-8 André Franco Montoro, em Rosana (SP), Milton José dos Santos, diz que a mortandade sazonal pelo frio costuma ser pequena e atinge mais fortemente os tucunarés.
Mas afirma nunca ter visto situação tão crítica desde que chegou à região, em 1961. “O rio baixou demais, é pedra e areia para todo canto”, diz. E usa uma comparação para explicar o papel da seca: “Se você colocar uma bacia de água na geada, ela vai congelar. Se colocar um barril, não vai”.
Com o nível das águas baixas, a aproximação do verão também é um fator de alerta, já que a temperatura tende a subir mais em trechos mais rasos dos rios. A permanência de grandes grupos de peixes confinados em trechos mais profundos é outra preocupação, pelo potencial de atrair pesca predatória.
Por isso, os consultores pedem antecipação do período de defeso na região, para proteger os peixes reprodutores em um momento de maior vulnerabilidade. E recomendam que a vazão não seja rebaixada novamente.
Entre pescadores e técnicos da Cesp, há ainda um temor de impactos sobre a piracema, já que a vazão reduzida se torna um obstáculo a mais para que os peixes encontrem áreas de desova ou subam as escadas construídas nas barragens para permitir a migração.
Milton José dos Santos teme que o cenário piore a situação dos pescadores locais, já abatidos desde o início da crise hídrica. “A maioria nem está pescando mais, tem pescador reclamando que está vivendo de doação”, conta. “Se prejudicar a desova agora, daqui a pouco não vai ter mais peixe.”
Os impactos na desova e a redução do estoque pesqueiro estão entre os riscos apontados no mais recente relatório entregue à ANA pela CTG (China Three Gorges), empresa que opera Jupiá. A companhia diz, porém, que ainda não detectou mortandade de peixes na área da barragem.
O vice-presidente da ONG Rio Paraná, Raphael Primos, questiona a prioridade dada pelo governo ao setor elétrico, em detrimento de questões ambientais e outros usos da água, e defende que postergar medidas de economia do consumo amplia impactos ambientais sem garantir o fornecimento de energia.
“Só estão empurrando com a barriga em negação, mas a realidade vai se impor”, afirma. “Vai ser como no combate à Covid”, conclui, repetindo comparação também usada pelos especialistas do ICS.
Procurado, o MME não havia se posicionado até a conclusão deste texto. O ministério tem repetido que vem tomando medidas para enfrentar a crise desde 2020 e que não há risco de racionamento de energia. As primeiras medidas para segurar a demanda foram anunciadas nas últimas semanas, mas ainda não estão em vigor.
O ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) diz que ainda vem realizando estudos sobre a viabilidade de manutenção das medidas de flexibilização das vazões, no contexto das ações para garantir a disponibilidade dos recursos hídricos e atravessar o atual período de escassez.
Em nota, a Cesp diz que a redução das vazões foi acompanhada de um “robusto plano de trabalho” aprovado e assistido pelo Ibama, que mobilizou mais de 70 profissionais, que utilizam caminhonetes, barcos, drones e helicóptero.
A CTG (China Three Gorges) diz que manteve acompanhamento diário da situação, segundo plano aprovado pelo Ibama, durante a redução da vazão. Hoje, o monitoramento é quinzenal. “Até o momento, não houve impactos negativos em relação à ictiofauna.”
A ANA disse que a fiscalização do monitoramento das regiões afetadas é de responsabilidade do Ibama. O órgão ambiental não havia se pronunciado até a conclusão deste texto.
NICOLA PAMPLONA