Consultório ambulante faz de curativo por pedradas na cabeça a teste de Covid em quem vive na rua
O trabalho faz parte do Consultório na Rua
Com mochilas equipadas com kits de primeiros socorros, uma equipe com enfermeira, dois agentes de saúde e um social caminha pelas ruas do bairro de Santa Cecília, na região central de SP, para avaliar a saúde de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Embaixo do Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, o trabalho é intenso com curativos, medição de temperatura, teste rápido de coronavírus e acompanhamento de doenças crônicas.
O trabalho faz parte do Consultório na Rua, programa federal de assistência à saúde que está em 120 municípios do país, de acordo com o Ministério da Saúde.
Em São Paulo, a iniciativa pública teve de ser ampliada durante a pandemia para dar conta do aumento do número de moradores de rua no período: eram 19 equipes antes da Covid-19 e, atualmente, são 26 que atuam em todas as regiões da cidade, segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB).
A efetividade da ação de assistência tem até as bênçãos do padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, uma das maiores autoridades do país em atenção a pessoas em situação de vulnerabilidade.
“Hoje esse programa é uma das coisas mais avançadas para a população de rua”, afirma o religioso, que ressalta, porém, a necessidade de avanços no número de equipes.
Logo no início da jornada, que dura cerca de três horas no período da tarde, a equipe encontra, no Minhocão, o padeiro Leandro Lozada, 45, sentado em um colchão, sem camisa, com um machucado nas costas e na cabeça. A enfermeira Renata Pontes, 43, coloca luvas de plástico e logo saca da mochila gaze e soro fisiológico para limpar os ferimentos.
“É um atendimento muito bom, não posso reclamar”, afirma Leandro. Ele conta que ficou ferido no dia anterior após brigar com outro morador de rua na estação de metrô Marechal Deodoro.
Leandro ainda cuida da mulher, a dona de casa Andrea Francisco, 48, que sofreu um AVC ali mesmo, debaixo do elevado, há pouco mais de um ano, e ainda segue vivendo na rua, utilizando uma cadeira de rodas emprestada. “Eles me trazem pomadas e posso pegar fraldas no posto”, afirma ela.
As equipes são compostas por profissionais que realizam acompanhamento em saúde com consultas, orientações, curativos, medicações, vacinação e outros procedimentos, segundo André Contrucci, interlocutor técnico de esquipes do Consultório na Rua em São Paulo.
“O objetivo é inserir a população de rua na rede de atenção à saúde. Parte de um trabalho de visitas diárias, inclusive nos feriados, de cadastro e de mapeamento territorial”, diz o interlocutor.
Há dez anos em situação de rua, o promotor de vendas Osías Monteiro do Nascimento, 51, anda com seus comprovantes da vacina contra o coronavírus em uma pequena bolsa que ele leva consigo onde quer que vá.
Osías recebeu a dose de reforço na praça Marechal Deodoro, em Santa Cecília, dentro do programa de assistência. Ele é um dos 630 moradores de rua do bairro que obtém atendimento de saúde onde estiver.
“Senti muito alívio ao ser imunizado. Tive reação, febre e cansaço, mas valeu a pena para evitar esse vírus. Agora, temos que mostrar o passaporte vacinal onde quer que a gente vá”, conta Osías, que passa por tratamento contra a sífilis com a equipe de saúde.
Até 5 de fevereiro de 2022, foram aplicadas 53.783 doses de vacina contra a Covid-19 em moradores de rua na capital paulista, incluindo doses de reforço, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde.
A artesã Bel, 41, mora em uma casa de lona montada debaixo do elevado e já está imunizada. Ela recentemente recebeu diagnóstico de tuberculose com a intervenção da equipe do Consultório na Rua recebe o tratamento ali mesmo no viaduto.
“Não sei o que seria sem eles, foram as melhores pessoas comigo, se preocupam e me trazem a medicação para tomar todos os dias.”
Bel tem três filhos e vai aproveitar a consulta com o ginecologista no posto, em março, para colocar implante anticoncepcional na pele.
O Consultório na Rua existe desde 2004 em São Paulo, nascido como A Gente Na Rua. Na esfera federal, foi criado em 2011 na gestão Dilma Rousseff (PT), já com o projeto paulistano como referência, informa o padre Julio.
“Surgiu dentro da atenção primária à saúde e está ligado às UBSs [Unidades Básicas de Saúde]. Agora, ele está no decreto de política nacional, construído a mil mãos”, diz o padre.
O religioso destaca outra característica do programa em São Paulo. “Todos os agentes de saúde são ex-moradores de rua ou de casas de acolhida que já estiveram em situação de vulnerabilidade.”
André Contrucci, o interlocutor técnico das esquipes, afirma que isso permite aproximação maior com a população de rua. “Os agentes de saúde usam os códigos da rua, sabem como abordar aqueles que têm atitude mais ríspida. No dia a dia é um trabalho fundamental.”
Hoje muitos deles são universitários ou formados, conta o padre. “Essa característica do programa é muito importante porque acolhe e proporciona crescimento e profissionalização dessas pessoas.”
Parte da equipe em Santa Cecília, o agente de saúde Daniel Cruz, 41, chegou a São Paulo em 2011. Veio do interior do estado para buscar oportunidades de trabalho, mas logo passou a morar em centro de acolhida. Ele passou um período nas ruas, boa parte desse tempo na praça 14 Bis, na Bela Vista, devido ao vício em entorpecentes.
A história de Daniel mudou em 2019, quando ele iniciou seu tratamento no Centro de Atenção Psicossocial. “Eu me encontrei. A partir daí, minha vida começou a mudar.”
Daniel recebeu em 2020 o convite para trabalhar como agente de saúde no programa Consultório na Rua para reforçar a equipe na pandemia e ali ele está há dois anos. “Adoro o que faço”.
Mas o ex-padeiro não fica parado e começou a estudar jornalismo em uma universidade privada, com bolsa de 50%. “Pretendo escrever um livro sobre a vida nas ruas.” Atualmente, ele mora em um pequeno apartamento na Aclimação, região central.
Outros profissionais que podem fazer parte das equipes são psicólogo, assistente social, cirurgião dentista, terapeuta ocupacional, agente social e médico.
Mas a pandemia mudou alguns procedimentos nas caminhadas. A enfermeira Renata conta que, desde março de 2020, dois itens passaram a fazer parte de sua rotina de visitas: o termômetro e o oxímetro.
“Pacientes que não conseguem sair do território, recebem essa atenção na rua”, diz a enfermeira da equipe, que realiza ronda diária para fazer curativos e certificar que os moradores de rua estejam tomando suas medicações de uso contínuo para tuberculose e HIV, por exemplo.
Renata afirma ainda que desde dezembro o teste de coronavírus passou a ser feito na rua. “Antes, os pacientes tinham que ser encaminhados à UBS, e muitos não queriam ir para não correr o risco de perder seus pertences. Então, com os testes em mãos, facilitou o diagnóstico e o tratamento.”
O Consultório na Rua também está em cidades como Porto Alegre (RS), Campo Grande (MS) e Recife (PE). Em 2021, foram repassados R$ 49 milhões para a política pública que atendeu, de janeiro a agosto, mais de 78 mil pessoas no país, segundo a gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Em janeiro de 2022, somente na cidade de São Paulo, foram realizadas 18.666 abordagens nas ruas e 14.657 atendimentos médicos, diz a prefeitura.
Apesar de ser só elogios ao programa, o padre Julio faz uma ponderação. “Ainda falta a cobertura da saúde mental. É preciso ter o médico específico e uma equipe própria.”
O padre declara ainda que o Consultório na Rua deve chegar a mais bairros. Segundo a Prefeitura de SP, está prevista a ampliação do programa com seis novas equipes ao longo dos próximos meses, passando de 26 para 32.
Por Tatiana Cavalcanti