Comunidade indígena de SC quase dizimada é base para julgamento no STF sobre marco temporal
Novo caminho na história está sendo construído no STF
Das quatro cidades catarinenses com áreas de abrangência na Terra Indígena Laklãnõ Xokleng, apenas uma tem no nome a referência ancestral: Itaiópolis, que surgiu de um híbrido tupi-grego e significa “cidade da pedra molhada”. As demais -Victor Meirelles, Doutor Pedrinho e José Boiteux- são homenagens a personalidades da região ligadas ao período pós-colonial.
A falta de representatividade no nome é, para a comunidade, apenas um dos símbolos de anos de exclusão e violência que seus membros vêm enfrentando.
Um novo capítulo dessa história está sendo construído no STF, que transformou a ação envolvendo o território, dominado principalmente pelo povo xokleng, mas também com representação guarani e kaingang, em paradigma para tratar de outras demarcações de terras indígenas em andamento pelo país.
O julgamento, retomado nesta quarta (1º) pelo Supremo, vai definir se as demarcações devem seguir a tese do marco temporal, na prática um novo critério segundo a qual indígenas só podem reivindicar terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Do outro lado está a teoria do indigenato, que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como originário, ou seja, anterior ao próprio Estado.
No caso do território catarinense, a origem da discussão está em uma ação de reintegração de posse movida pelo IMA (Instituto de Meio Ambiente) de Santa Catarina contra a comunidade.
Em 2009, o governo alegou que cerca de cem indígenas invadiram um espaço da Reserva Biológica Sassafrás, em Itaiópolis, fora dos limites de 14 mil hectares destinados pelo estado aos xoklengs em 1956.
O julgamento se refere a um recurso da Funai (Fundação Nacional do Índio) contra uma decisão do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), que decidiu favoravelmente ao IMA contra o povo indígena.
Ocorre que a área originalmente reivindicada pela comunidade compreende 37 mil hectares, número próximo da extensão do território reservado aos indígenas no primeiro contato com os brancos, ainda em 1914, segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
“Desde o início do século passado o Estado brasileiro pagava os bugreiros para assassinarem as comunidades indígenas para que os europeus viessem morar na região, e as terras foram diminuídas várias vezes. Venderam a melhor parte das terras, a mais plana, para os colonos”, afirma o líder xokleng Brasilio Pripra.
Após a diminuição do território original, ele conta que a comunidade também foi atingida pela construção, em 1975, de uma barragem para proteger das enchentes no Vale do Itajaí as cidades de Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar.
“O pouco que tínhamos de terra agricultável na margem do rio, hoje a barragem cobre com água”, diz.
Segundo o líder indígena, a construção atingiu justamente os 15% da área utilizada pela comunidade para moradia e produção. O restante era território de mata preservada, destinada à caça, coleta e retirada de materiais para rituais e artesanatos da comunidade.
“Resta devidamente comprovado que o povo xokleng foi submetido a diversos tipos de violências para expulsão e diminuição das terras de ocupação tradicional indígena”, afirma Paloma Gomes, assessora jurídica do Cimi e uma das advogadas do caso.
Pripra afirma que sucessivos ataques fizeram com que a população xoklengs quase fosse dizimada do país, restando hoje cerca de 500 famílias representantes da etnia no território catarinense.
Caso a tese do marco temporal prevaleça no STF, os xokleng devem permanecer na área menor, já garantida.
Do contrário, o território pode ser expandido, atingindo quase 500 agricultores, principalmente de origem alemã, que se estabeleceram na região.
“Qual o grande efeito de se reconhecer uma terra indígena tradicional e delimitá-la? As pessoas que vivem ali, os não indígenas, são considerados intrusos, mesmo tendo um título de propriedade, e são retirados apenas com indenização de benfeitorias”, aponta o procurador-geral de Santa Catarina, Alisson de Bom de Souza, que representa o Estado na ação.
Segundo ele, a adoção do marco temporal deve representar a pacificação da questão e conferir estabilidade jurídica a todas as partes, inclusive em outros processos.
“No Rio de Janeiro e em São Paulo havia índios e provavelmente eles foram expulsos dali. E aí? Qual o critério?”, questiona diante da possibilidade de a corte entender a favor da teoria do indigenato.
“O que não se pode fazer é uma eterna revisão de limites, uma eterna revisão das demarcações feitas com base na Constituição porque é isso que, em última análise, está se pretendendo”, conclui o procurador.
Já a advogada Juliana Batista de Paula, do Instituto Socioambiental, uma das entidades cadastradas para se pronunciar na ação, avalia que o argumento é uma tentativa de “criar terrorismo e comoção” em torno da questão.
“Não temos nenhum povo indígena no país pedindo a demarcação de Copacabana e de Ipanema. As áreas que os indígenas reivindicam são as que eles têm uma relação simbólica e prática, ancestral e atual, e essas estão bem identificadas e bem definidas”, afirma.
Segundo ela, mais de 230 áreas indígenas que se encontram em alguma das fases de demarcação anterior à homologação podem ser atingidas pela decisão do Supremo.
“Mesmo em áreas onde os indígenas estavam em 1988 existe essa disputa. Há casos de indígenas que nem estavam contactados ou tinham um contato muito incipiente na época. Ainda hoje temos povos isolados, como vão comprovar que estavam na área se até hoje não têm contato?”, questiona.
Para Paloma Gomes, se o resultado do julgamento for a favor do marco temporal, a decisão pode também contribuir para o aumento no número de invasão de terras por garimpeiros.
“Significará a consolidação e a legitimação de toda a sorte de violências e desrespeitos a que o povo xokleng e todos os demais povos indígenas no país foram submetidos”, afirma.
As entidades que representam os indígenas destacam que os territórios são importantes para a conservação ambiental e que cerca de 70% dos processos de demarcação já foram concluídos. Restam disputas sobre áreas menores, principalmente no Sul do Brasil.
Assim, a eventual vitória dos indígenas nas ações em aberto não modificaria de forma expressiva os cerca de 14% do território total do país atualmente destinados a esses povos.
“Há muita terra no país e não haveria nenhuma consequência sobre o agronegócio. Até porque temos 51 milhões de hectares de terras públicas não destinadas –duas vezes o estado de São Paulo– e mais de 20% do território nacional ocupado por pasto”, aponta Juliana.
“O marco temporal vem para destruir as florestas. Já temos várias cidades com água resumida, se não nos preocuparmos com o meio ambiente, para preservar, estarão tirando a vida de milhares de pessoas”, afirma Pripra, líder xokleng.
Em nota, a Funai afirmou que trabalha “em estrita obediência à legislação vigente, com absoluto respeito aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública e aos entendimentos jurídicos da Advocacia-Geral da União (AGU)”.
A entidade apontou ainda que aguarda a posição do STF, pois a indefinição em torno do tema “deixa um vácuo regulamentar que resulta em insegurança jurídica”.
Texto: Katna Baran