Cigarro eletrônico não ajuda a parar de fumar e estimula vício
Vendido como um produto menos prejudicial a saúde, seus principais consumidores são jovens, seduzidos pelos sabores disponíveis
Criado no início dos anos 2000, o cigarro eletrônico tinha como objetivo diminuir a dependência de nicotina, mas o tiro saiu pela culatra. Segundo especialistas, o dispositivo, também conhecido como vape, não ajuda a parar de fumar e ainda estimula novos fumantes.
Vendido como um produto menos prejudicial a saúde, seus principais consumidores são jovens, seduzidos pelos sabores disponíveis e a praticidade que oferece.
O relatório Covitel (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia), realizado nos meses de janeiro, fevereiro e março deste ano pela organização Vital Strategies e pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas), revelou que 19,7% dos brasileiros de 18 a 24 anos já experimentaram cigarros eletrônicos. Ou seja, um a cada cinco jovens no país usou ou usa o dispositivo.
A AMB (Associação Médica Brasileira) estima que 650 mil pessoas sejam usuárias de cigarros eletrônicos no Brasil. São, porém, ilegais no país.
Em 2009, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) proibiu a comercialização, importação e propaganda de cigarros eletrônicos. Dez anos depois, o órgão abriu discussão para uma possível atualização da Resolução.
No início de maio de 2022, representantes de 50 entidades médicas divulgaram um documento com informações sobre os males desses dispositivos e se posicionaram a favor da proibição.
Wagner Ferreira, 26, de São Paulo, começou a fumar o cigarro comum aos 13 anos, mas acabou migrando para o eletrônico. “Parei durante um tempo, mas depois voltei quando tinha 22 anos. Mais recentemente, passei a fumar o eletrônico junto com o convencional”, relata.
Ao contrário do convencional, que queima por combustão, os vapes funcionam por vaporização. Eles contém um líquido que é aquecido e gera o vapor aspirado pelo usuário. O que o torna prático é o reabastecimento, que permite manter o mesmo dispositivo por anos.
Os chamados Dispositivos Eletrônicos para Fumar como conhecemos hoje foram criados em 2003 por Hon Lik, um farmacêutico chinês que buscava um caminho para largar o tabagismo após perder o pai por câncer de pulmão.
“Ele nasceu com a promessa de simular a dependência em nicotina de forma mais leve e, teoricamente, menos tóxica para as pessoas conseguirem deixar o vício. Mas na prática isso não aconteceu”, conta o oncologista Igor Morbeck, membro do Comitê Científico do Instituto Lado a Lado pela Vida.
Isso porque, ao contrário do que boa parte das pessoas acredita, os cigarros eletrônicos possuem, sim, nicotina na sua composição. A cardiologista Jaqueline Scholz, assessora científica da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), explica que, inicialmente, a carga da substância fornecida por esses dispositivos de fato era mais baixa.
“Mas os atuais, pertencentes à terceira e quarta geração, são mais potentes. As pessoas até conseguem trocar o convencional pelo eletrônico, mas não param de fumar”, alerta a especialista. Os especialistas ouvidos pela Folha frisam que não há evidências científicas suficientes que mostrem que esses dispositivos ajudem no desmame da nicotina no tratamento da dependência química.
No entanto, eles possuem a vantagem de não conter alcatrão e monóxido de carbono, que seriam os responsáveis, no produto original, por causar infarto e tumores. Só que isso não significa que os DEFs não sejam prejudiciais.
Scholz alerta para outras substâncias tóxicas presentes no líquido do vape. “Além da nicotina, ele é composto por partículas ultrafinas de metais pesados, alta concentração de níquel, elementos aromáticos, glicerol e outros aditivos. Essa interação, inclusive, forma novas substâncias desconhecidas.”
Esse conjunto tem uma capacidade inflamatória que acarreta em problemas para a saúde respiratória e cardiovascular, favorecendo a hipertensão, aterosclerose, infarto e até a morte. Em 2019, uma nova síndrome respiratória, que provocava fibrose pulmonar, pneumonia e insuficiência respiratória, aterrorizou os Estados Unidos em meio a pandemia de Covid-19.
Até janeiro de 2020, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo americano) havia registrado 2.711 casos hospitalizados e, até fevereiro, 68 mortes haviam sido confirmadas no país. Após várias análises, detectaram que a doença, batizada de Evali (lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico, em português), era relacionada ao uso do dispositivo.
O cigarro convencional também provoca problemas no aparelho respiratório e cardíaco, mas o que preocupa a comunidade médica em relação ao vapes é a velocidade com a qual esses eventos ocorrem.
Scholz afirma que são necessários cerca de 20 anos de exposição ao cigarro para notar o surgimento desses transtornos. “É até comum conhecer pessoas que fumam a vida toda e aparentemente estão bem. Mas, com o uso de cigarro eletrônico, alguém que utiliza há três ou quatro anos já apresenta esses problemas. É assustador”, complementa o oncologista Morbeck.
Por que os jovens são os principais usuários de cigarro eletrônico? Wagner conta que incluiu o vape na rotina por causa da praticidade que ele oferece, já que não precisa acender um filtro e esperar queimar inteiro, como é o convencional. Você pode aspirar aos poucos.
“Ele ajuda em situações que o comum é mais ‘aceito’ socialmente. Se você vai para uma festa, é mais fácil porque você tem sempre à mão. Além disso, não tem cheiro.Você consegue consumir nicotina sem incomodar as outras pessoas”, relata.
O psiquiatra André Malbergier, professor da FM/USP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), diz que esse não é o único motivo que torna os vapers populares entre os mais novos.
“Como toda droga, o apelo é sempre maior na população jovem. Em geral, até os líquidos usados mostram isso, por serem sabores de tutti-frutti, hortelã, refrigerante… Isso dá uma falsa impressão de que os cigarros são só aromatizados, já que nicotina não tem sabor”, discorre Malbergier.
O design dos dispositivos também é cointribui para sua popularidade. Com tamanhos que cabem na palma da mão, são conhecidos como pen-drives por causa do formato similar. Alguns são até estampados.
Um recente estudo da Universidade de San Diego, na Califórnia, mostrou que pessoas de 12 a 24 anos que experimentam cigarro eletrônico correm um risco três vezes maior de se tornarem fumantes diários em relação a quem nunca utilizou o dispositivo.
“A sociedade como um todo tem que estar atenta a esse produto, que não é seguro. Tabagismo é uma doença e o cigarro eletrônico não é um tratamento”, finaliza a cardiologista Scholz.
Por Maria Tereza Santos