Caminhoneiros antivacina no Canadá geram temor de violência e alteram política nacional
Novas manifestações estão previstas para os próximos dias em Toronto
Os protestos iniciados no Canadá por caminhoneiros contrários à obrigatoriedade de vacinas contra a Covid-19 completam uma semana nesta sexta-feira (4), em meio ao temor de uma escalada de violência e a uma possível reconfiguração da política nacional.
A adesão aos atos caiu bastante ao longo da semana -do pico de 15 mil pessoas nas ruas de Ottawa aos pouco mais de 200 caminhões e outros veículos que seguem bloqueando ruas e estradas na capital do país. Mas novas manifestações estão previstas para os próximos dias em Toronto, cidade mais populosa e principal centro financeiro do Canadá, e em Québec, capital da província de mesmo nome.
“Estou aqui pela liberdade. Essa coisa toda vem acontecendo há dois anos e parece que todos os dias há algo mais. Não precisamos de passaporte de vacina”, disse Paul Aubue, 64, em entrevista ao jornal britânico The Guardian, acrescentando que a família o convenceu a não receber o imunizante contra o coronavírus. “As pessoas nascem e morrem todos os dias, essa é a natureza.”
Proprietário de uma empresa de caminhões -e, portanto, com motivações financeiras, não apenas ideológicas, para aderir aos atos-, ele deixou a província de Nova Brunswick, localizada no extremo leste do país, na divisa com o estado americano do Maine, para se juntar aos manifestantes em Ottawa.
Como Aubue, muitos iniciaram os atos a princípio contra a exigência de vacina a caminhoneiros que cruzam a fronteira com os EUA. À medida que o movimento ganhou força, parte dos manifestantes também passou a ter o premiê Justin Trudeau e suas políticas de enfrentamento à pandemia como alvo.
Por isso, alguns dos presentes no bloqueio em Ottawa dizem que só desmontarão seus acampamentos improvisados em caminhões e trailers quando o governo federal suspender as restrições –embora quase todas as regras a que eles se opõem sejam de âmbito provincial, isto é, não dependem do aval de Trudeau.
“Nosso movimento cresceu no Canadá e em todo o mundo porque as pessoas comuns estão cansadas das ordens do governo e das restrições em suas vidas que agora parecem estar fazendo mais mal do que bem”, disse Tamara Lich, uma das principais organizadoras do movimento.
Os manifestantes conseguiram mais de 10 milhões de dólares canadenses (R$ 41,7 milhões) em uma campanha de arrecadação virtual. A plataforma GoFundMe, porém, suspendeu a disponibilização do dinheiro enquanto busca verificar como ele será gasto. Representantes da empresa foram convocados por legisladores canadenses a depor e explicar as garantias da plataforma quanto à liberação dos fundos.
A insatisfação dos moradores da capital com o tumulto causado pelos atos é crescente. Há denúncias de assédio, intimidação e violência, além do fato de que a vida cotidiana também foi afetada. Várias lojas mantiveram as portas fechadas, e os donos de estabelecimentos estão em estado de alerta, já que os manifestantes incluem, entre suas táticas de protesto, entrar em shoppings sem máscara, por exemplo.
A polícia local anunciou a abertura de investigações sobre incidentes como depredação de monumentos e do patrimônio público e a presença, entre os manifestantes, de bandeiras com símbolos nazistas.
Peter Sloly, chefe da polícia de Ottawa, chegou a levantar a possibilidade de que as Forças Armadas fossem convocadas para atuar na contenção dos atos. Segundo ele, isso se justificaria pela informação de que um número grande de armas estaria sendo contrabandeado a parte dos manifestantes.
Trudeau, porém, descartou essa alternativa. “Essas cartas não estão na mesa agora”, disse o premiê, acrescentando que as autoridades devem ser “muito cautelosas antes de mobilizar os militares em situações contra os próprios canadenses”.
A postura da polícia tem sido, assim, de monitoramento.
Até agora, foram emitidas 30 multas de trânsito, e três pessoas foram presas. Embora Sloly tenha descrito os protestos como “intoleráveis e sem precedentes”, há quem acuse a polícia de pegar leve demais com os manifestantes. A causa indígena, por exemplo, é um tema sensível à sociedade canadense, e os ativistas ligados a ela frequentemente acusam as autoridades de reprimir eventuais protestos de membros das chamadas Primeiras Nações com violência desproporcional.
“Está tudo bem se homens brancos furiosos protestarem, porque eles estão politicamente alinhados com vocês, mas não está tudo bem se os indígenas protegerem pacificamente seus próprios direitos”, disse a advogada e professora indígena Pam Palmater à emissora APTN News.
Nesta sexta, a polícia de Ottawa emitiu um comunicado em que afirma que vai colocar mais agentes nas ruas e implementar “uma estratégia de aumento de contenção” para restaurar a ordem na capital.
“O ódio, a violência e os atos ilegais que os moradores e as empresas de Ottawa sofreram na última semana são inaceitáveis em qualquer circunstância”, afirmou a corporação. Segundo a nota, a polícia dará ordens para que alguns caminhoneiros se desloquem e, se eles se recusarem, seus veículos serão rebocados.
Até esta sexta, 85% dos canadenses receberam ao menos uma dose do imunizante contra o coronavírus, 79,5% completaram o primeiro esquema vacinal e 41,9% tomaram a dose de reforço.
Pesquisa publicada pelo instituto Abacus Data nesta quinta (3) aponta que 68% dos entrevistados dizem ter muito pouco em comum com os manifestantes do chamado “comboio da liberdade”. Os outros 32% dizem se identificar com os caminhoneiros e outros grupos que se juntaram aos atos.
Questionados sobre como viam as manifestações, 57% as descreveram como “ofensivas e inapropriadas”, enquanto 43% as classificaram de “respeitosas e apropriadas”. Foram ouvidos 1.410 canadenses entre os dias 31 de janeiro e 2 de fevereiro. O levantamento também sondou a visão dos entrevistados a partir de suas convicções políticas. As maiores fatias de apoio aos atos contra as medidas de enfrentamento à pandemia vêm dos partidos à direita do espectro político.
Embora a parcela de canadenses nas ruas e o apoio aos atos sejam minoritários, as dimensões do movimento podem alterar o cenário político canadense. A principal legenda da oposição, o Partido Conservador, tem demonstrado amplo apoio aos manifestantes.
Erin O’Toole, que liderava a sigla desde agosto de 2020, foi deposto por seus correligionários nesta quinta. A justificativa oficial para a troca de comando foi o desempenho eleitoral nas últimas eleições, vencidas pelo Partido Liberal de Trudeau.
Nos bastidores, porém, os rumores são de que a postura de O’Toole em relação ao “comboio da liberdade” colaborou para sua queda. A princípio, o agora ex-líder procurou se distanciar da demanda dos manifestantes. Depois, demonstrou algum apoio, mas não com a ênfase que talvez fosse esperada.
No último fim de semana, O’Toole se encontrou com representantes do protesto e falou a favor do direito à manifestação pacífica, mas criticou “indivíduos que profanaram” memoriais e monumentos em Ottawa.
O Partido Conservador agora está sob liderança interina, e um dos favoritos para assumir o vácuo deixado por O’Toole é Pierre Poilievre. Nas redes sociais, ele tem feito publicações em apoio aos manifestantes que, em sua visão, são “pacíficos, gentis e patriotas” e estão escolhendo a “liberdade em vez do medo”.
“Se você for ao supermercado e encontrar produtos nas prateleiras, agradeça aos caminhoneiros. Se encontrar prateleiras vazias, agradeça a Justin Trudeau”, afirmou Poilievre em um de seus vídeos.
Para ele, a exigência de comprovantes da imunização contra a Covid são uma “vingança da vacina” arquitetada pelo primeiro-ministro contra a classe dos caminhoneiros.
Para analistas políticos, o fato de o “comboio da liberdade” ter atraído ao Canadá representantes de grupos da extrema direita americana, como seguidores da teoria conspiratória QAnon e dos Proud Boys (considerados terroristas no país), pode ser o gatilho para a radicalização da política local. A comparação é feita com base no que aconteceu nos EUA, principalmente a partir de 2008, com a ascensão do movimento conservador Tea Party. À época, a onda mais radical mudou a composição do Congresso americano e reformulou a retórica política do país.
No Canadá, tradicionalmente, os discursos mais moderados tendem a trazer maiores dividendos eleitorais, mas ainda não estão claras as consequência políticas do “comboio da liberdade”.
“Se o populismo canadense aderir a essa roupagem antigoverno, anti-imigração, antirrefugiados e racista, e se alguns funcionários eleitos sentirem que esse segmento da população é útil, isso vai influenciar o discurso em termos de como realmente fazemos política no Canadá”, disse Amarnath Amarasingam, pesquisador de movimentos extremistas e populistas da Universidade da Rainha, no Canadá, ao Guardian.
“Se for como nos EUA será igualmente destrutivo.”
Por Lucas Alonso