Caça a golpistas nas redes sociais gera debate sobre uso da tecnologia
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o trabalho voluntário de reunir provas sobre o ataque do dia 8 de janeiro pode ajudar autoridades
Os atos bolsonaristas marcados pela depredação dos prédios dos três Poderes em Brasília despertaram um ímpeto investigativo nas redes sociais, com nomes e fotos de radicais de extrema-direita em anúncios de autoridades, reportagens, publicações de influenciadores e de perfis anônimos.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o trabalho voluntário de reunir provas sobre o ataque do dia 8 de janeiro pode ajudar autoridades, mas também envolver inocentes e que cabe apenas ao Estado a responsabilidade por identificar criminosos.
No dia 9, o Ministério da Justiça divulgou um canal oficial de denúncias sobre a destruição nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF (Supremo Tribunal Federal), que podem ser registradas no email denuncia@mj.gov.br. O órgão diz que recebeu 50 mil mensagens no primeiro dia de funcionamento.
Só no Instagram publicações com os termos “terroristas”, “golpistas”, “radicais” e “extrema-direita” receberam 78,5 milhões de interações na semana entre 8 e 14 de janeiro, segundo o CrowdTangle, plataforma da Meta que compila dados sobre a rede social.
Essa onda de interesse impulsionou o crescimento de páginas no Twitter e no Instagram. O principal desses perfis, Contragolpe Brasil, traz fotos e dados de pessoas que estariam envolvidas no ato e recomenda o registro de denúncias no canal oficial do governo. Criado no domingo, o perfil atingiu 891 mil seguidores no primeiro dia e chegou a 1,2 milhão de seguidores nesta segunda (16).
Procurada pela reportagem, a Meta informou não comentar casos e perfis específicos. As diretrizes da comunidade da rede social não citam a identificação de supostos envolvidos em crime, apenas pede que seus usuários cumpram a lei.
O perfil Contragolpe Brasil não respondeu às questões feitas pela reportagem no Instagram, o único canal disponível para contato.
O QUE PODE SER DIVULGADO?
A divulgação de fotos e nomes de possíveis envolvidos nos ataques de domingo não constitui prática criminal, quando se considera que os próprios vândalos divulgaram imagens de si, de acordo com a diretora do InternetLab Heloísa Massaro. O interesse público ainda amplia as possibilidades de uso.
Ela diz que os perfis envolvidos em investigações independentes não demonstraram visar lucro. Por isso, não precisam atender à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).
Massaro lembra que assuntos de segurança pública ficam fora do escopo da LGPD. Está em discussão no Congresso uma lei de proteção de dados penal, que tratará de ilícitos criminais.
Identificar os participantes dos atos golpistas sem a devida checagem pode prejudicar inocentes. Isso seria enquadrado como imputar falsa acusação, um crime, com pena de até oito anos.
Fundador da Novelo Data, Guilherme Felitti recorda dos desdobramentos do atentado à Maratona de Boston em 2013. O tabloide New York Post publicou uma foto do então secundarista Salah Barhoum, circulado como um suspeito pelo ato terrorista. O jovem de ascendência marroquina sofreu ameaças e perseguições.
Segundo o veículo norte-americano, a imagem havia sido encaminhada entre as forças policiais e indicava dois possíveis suspeitos. Uma investigação do BuzzFeed News mostrou depois que as denúncias contra Barhoum haviam começado em fóruns do Reddit e do 4chan. O New York Post se pronunciou à época: manteve a versão da história e afirmou que não identificou os jovens, mas tirou a palavra suspeitos do título.
COM O QUE SE PREOCUPAR QUANDO PRODUZIR OU CONSUMIR ESSES CONTEÚDOS?
O pesquisador de ciência de dados do Oxford Internet Institute Adriano Belisário afirma que transparência é fundamental para divulgar informações sensíveis, como a identidade de envolvidos em supostos crimes.
Os perfis têm publicado fotos e nomes de supostos envolvidos nos atos sem explicar como alcançaram tal resultado. Os posts começaram no domingo, antes de o governo divulgar a primeira lista de envolvidos, na terça-feira (10).
Felitti diz que ferramentas de reconhecimento facial também podem ser aplicadas às imagens para identificar os envolvidos, apesar de alertar que esses modelos computacionais entregam respostas equivocadas em uma frequência perigosa.
E quem opera esses algoritmos é incapaz de evitar os erros, uma vez que a inteligência artificial recebe a informação e entrega a resposta mais provável -sempre existe uma imprecisão, maior para pessoas negras.
O QUE PODE SER FEITO COM OS MATERIAIS DISPONÍVEIS NAS REDES?
As próprias autoridades têm usado as imagens da invasão publicadas por bolsonaristas para reunir provas sobre o ato golpista.
O interventor federal na Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Capelli, disse em entrevista a jornalistas nesta segunda que os vídeos servem como prova para avançar nas investigações dos ataques do dia 8.
Belisário afirma que as publicações em redes sociais fornecem outras pistas: onde e quando os golpistas estavam. Essas informações podem ser usadas para reconstruir a cena do crime em reportagens e produções documentais.
Foi o que fez o New York Times, no documentário Days of Rage (Dias de Fúria, em tradução livre) sobre o ataque ao Capitólio para impedir a posse do democrata Joe Biden. A equipe de investigações visuais do jornal norte-americano desenvolveu animações com base em horários e imagens de transmissões ao vivo.
Os atores-chave da invasão ao Capitólio foram identificados a partir da investigação oficial. A polícia federal americana afirma ter analisado um material equivalente a 361 dias ininterruptos de gravações, que somam 9 terabytes de informação.
Por Pedro Teixeira