Botos são deslocados no Amazonas para evitar morte por superaquecimento de água

Os cientistas querem os botos vivos, e por isso decidiram deslocar esses animais na enseada de Papucu

A enseada de Papucu, um lugar rico em peixes, bem próximo do porto de Tefé (AM), atrai dezenas de botos vermelhos -os botos cor de rosa, como são popularmente conhecidos- e tucuxis -uma espécie com menor porte. A comida é farta, e os botos aparecem lá invariavelmente.

O último sábado (14) foi o dia de um movimento que nunca havia sido feito, que ninguém da região diz ter ciência de ter presenciado, mesmo que parecido: a retirada dos botos da enseada.

Os cientistas querem os botos vivos, e por isso decidiram deslocar esses animais na enseada de Papucu. Foi ali que, em meio a uma seca severa e histórica na região do médio rio Solimões, com encolhimento agressivo do lago Tefé e transformação da paisagem, a água superaqueceu e bateu quase 40°C.

Quando a água, em processo de vazante, começava a esquentar além do aceitável, morreram os primeiros botos. Em 28 de setembro, dia de recorde da temperatura na enseada, com 39,1°C, ocorreram 70 mortes. Os óbitos de machos, fêmeas, filhotes, jovens e adultos prosseguiram -foram mais de 140 ao todo.

Carcaças eram encontradas pelo lago Tefé. Na linha de frente passaram a atuar pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sediado em Tefé e voltado a atividades de pesquisa e manejo na Amazônia. O instituto tem um grupo de pesquisa de mamíferos aquáticos amazônicos, liderado pela pesquisadora Miriam Marmontel.

Mesmo com a interrupção da mortandade, a situação evoluiu para uma emergência ambiental. Não se sabe a causa das mortes; pesquisadores não descartavam hipóteses como contaminação por patógenos ou toxinas e tinham dificuldades em enviar amostras coletadas para análise em Manaus e São Paulo; o lago é a alma de Tefé e é bastante usado pela população para banho e recreação.

Por isso, o monitoramento dos botos passou a envolver a área de emergência ambiental do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Agentes do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) apoiam as ações.

Passadas duas semanas da mortandade, a hipótese mais provável para o que ocorreu é o superaquecimento das águas do lago Tefé, especialmente na enseada de Papucu.
Pesquisadores notaram que parte dos animais tinha o estômago vazio, apesar da abundância de peixes. É provável que tenham necessitado de um gasto maior de energia para regulação da temperatura corpórea. Esse processo pode ter provocado aumento de pressão sanguínea e alteração cerebral.

“Não se pensava em efeito da temperatura em mamíferos aquáticos”, afirma Ayan Fleischmann, pesquisador na área de geociências no Instituto Mamirauá, em referência ao desconhecimento sobre o que ocorreu no Papucu. “Tudo bate com alta temperatura.”

Diante das evidências, ninguém envolvido com a operação dos botos, como Fleischmann, quer voltar a presenciar o que ocorreu nos últimos dias de setembro. A própria comunidade local foi impactada pelas mortes desses golfinhos de água doce.

Foi assim que, depois de muita discussão entre os cientistas e servidores envolvidos, chegou-se a uma solução provisória e radical: os botos e tucuxis precisam sair da enseada onde a temperatura bateu os quase 40°C, diante da perspectiva de prolongamento da estiagem -o lago segue descendo, perdendo volume, com baixas de 3 a 6 cm.
Na boca da enseada, estacas de madeira foram instaladas de lado a lado, em formato de V. Uma abertura foi mantida no meio da grade armada, para passagem dos botos.

Com tanta comida no Papucu, a saída dos animais não seria espontânea. Assim, na manhã deste sábado, depois de muita discussão sobre o melhor procedimento a ser adotado, funcionários do Mamirauá começaram a conduzir a passagem de uma rede pela enseada, de modo a empurrar os botos até a saída.

A rede era armada e arrastada, seguida de uma “zoada” -um barulho com a corda e a própria rede na água- para impedir o retorno dos animais. Mais abaixo, era recolhida e armada de novo, até a grade.
A primeira tentativa falhou. Os botos escaparam já próximos às estacas. À tarde, as equipes de Mamirauá, ICMBio e Ibama envolvidas na operação repetiram o procedimento, evitando as brechas, e parte dos botos seguiu o curso desejado pelos pesquisadores, em busca de poços mais profundos e frios.

A passagem da cerca foi fechada para concluir a operação. É um procedimento novo, delicado e que será rediscutido e avaliado ao longo dos dias.

A estimativa é que a enseada tinha de 20 a 30 animais. Em todo o lago Tefé, a população chegava a 900 botos e 500 tucuxis. Assim, a perda de animais representou uma perda de 10% dessa população.
“Se de fato foi hipertermia, o que nos espera nos próximos anos?”, questiona Fleischmann. “O boto é um indicador de uma tragédia maior.”

Cláudia Sacramento, chefe da divisão de emergência ambiental do ICMBio, enviada a Tefé, diz que “foi assustador chegar e ver tudo aquilo”. “Os bichos estavam bem, mas agonizando.”

A condução dos botos que ficam na enseada para pontos mais profundos e resfriados do lago permitirá melhor acesso aos animais, caso ocorra uma nova crise, segundo Sacramento. “Se ocorre algo, a gente não consegue nem acessá-los. Eles podem se afogar no seco.”

No fim da manhã de sábado, o termômetro colocado na enseada de Papucu, bem próximo da cerca montada com estacas, marcava 30,5°C. O lugar tinha 2 metros de profundidade.
Uma chuva fina caiu sobre Tefé por três dias seguidos. Foi o suficiente para resfriar o lago. Mas o futuro da estiagem -e dos botos e tucuxis da Amazônia- é uma incógnita.

Por Vinicius Sassine e Lalo de Almeida 

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