Após mês do Orgulho LGBTQIA+, discussões e patrocínio desidratam
Ato deu início a uma marcha por direitos igualitários e culminou em paradas do Orgulho pelo mundo
“Estou passando aqui para dar um adeus e me despedir de vocês. Não sei se vocês sabem mas nós, pessoas LGBTQIA+, temos um modo hibernar em que a gente fica 11 meses do ano sem gastar dinheiro nem com comida, com aluguel, com nada.”
Foi assim que a cineasta Galba Gogóia, 27, registrou em vídeo a própria despedida de um mundo que, segundo ela, só a vê uma vez por ano. E isso acontece a cada mês de junho.
O sexto mês do calendário é internacionalmente festejado como o do Orgulho LGBT+ por causa de um marco: a revolta de Stonewall. Liderado por travestis, lésbicas e gays, o protesto pôs fim às agressões que os LGBTs+ sofriam em batidas policiais em um bar de Nova York, em 1969.
O ato deu início a uma marcha por direitos igualitários e culminou em paradas do Orgulho pelo mundo -a maior delas, a de São Paulo, é realizada também em junho. Na pandemia de Covid-19, o evento tem ocorrido de forma virtual.
Gogóia, pernambucana radicada no Rio de Janeiro que se identifica como travesti, afirmou à Folha que o seu “adeus” originou-se de uma situação recorrente. “Parece que a gente só tem espaço em junho”.
“Em junho eu tive que dizer muitos nãos por causa do grande número de trabalhos, parcerias e palestras que muitas empresas queriam que eu fizesse”, disse ela. “Mas, agora, eu estou hibernando porque tudo some após junho”.
A celebração das cores do arco-íris tira todo mundo do armário no mês do Orgulho. Empresas de vários segmentos se mostram aliadas das causas LGBTs+, contratam celebridades e influenciadores digitais que se encaixam em uma das letras que integram a sigla para levantar bandeiras de liberdade.
O mês também vira palco para as discussões sobre os entraves que dificultam a vida de LGBTs+. Governos aproveitam o espaço na vitrine para divulgar suas ações em favor da comunidade e até decisões judiciais que buscam equiparar direitos são proferidas -a última delas foi publicada em 28 de junho deste ano, Dia Internacional do Orgulho.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o SUS (Sistema Único de Saúde) altere seus sistemas de informação que ainda bloqueiam o acesso da população trans e travesti a determinadas especialidades médicas.
A medida, que ainda será analisada em plenário da Corte, permitirá que homens trans e pessoas transmasculinas que conservam o aparelho reprodutor feminino possam ter direito às consultas e tratamentos com ginecologistas e obstetras. O mesmo será possível para mulheres trans e travestis que buscam tratamentos em urologia e proctologia.
Em 2019, outra decisão do STF tornada pública em junho criminalizou a homotransfobia equiparando-a ao crime de racismo até que o Congresso Nacional crie legislação própria sobre o tema.
Bruna Benevides, pesquisadora da área de violência na Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), nota que a concentração das discussões LGBTs+ em torno da efeméride resulta do pressuposto de que é preciso cumprir “apenas uma agenda”.
O “junhismo”, diz a pesquisadora, é um fenômeno oriundo de um comportamento das marcas, dos governos e da mídia. “Porque nós, das organizações civis, seguimos trabalhando, pressionando os organismos públicos e a iniciativa privada a abrir espaço para as nossas pautas o ano inteiro”, diz Benevides.
O termo “junhismo” tem sido usado por ativistas como uma crítica à ideia de que as pessoas LGBTs+ só têm vez e voz durante o mês do Orgulho.
Para Benevides, a intensa movimentação das marcas em junho tem relação “com o capitalismo, que absorve as nossas pautas, criam ações de marketing que, ao final, geram mais lucro a elas sem um retorno concreto à comunidade”.
É o que a cineasta Galba Gogóia diz perceber quando comparece a uma mesma empresa por vários anos seguidos para falar sobre diversidade e inclusão “e não vê nenhuma pessoa trans empregada”.
O que também é uma praxe, segundo Benevides, da política institucional. “As cidades iluminam seus monumentos com as cores do arco-íris, que é lindo. Mas cadê as políticas de incentivo à diversidade, à proteção social e de saúde a essa população?”, questiona.
E a mídia caminha “a reboque, não faz a crítica e também acaba agendando as discussões”, diz a pesquisadora da Antra. “É como se as nossas causas fossem visibilizadas, mas sem nenhum enfrentamento profundo”, afirma Leandrinha Du Art, 26, ativista travesti com deficiência, de Belo Horizonte.
Du Art questiona quem tem tido espaço nas capas de revista, nas campanhas publicitárias e na imprensa. “Não vejo as monas caminhoneiras, as travestis com deficiência ou corpos pretos e gordos LGBTs+ “, diz.
Teóloga metida a filósofa, Du Art bate cabelo, faz carão e promove debates em suas redes sociais para mostrar que corpos como o dela são atraentes e precisam de um lugar no mundo -o ano inteiro. “Só para exemplificar o que eu vivo: os corpos com deficiência escolhidos nas campanhas são os que não parecem tão deficientes assim. É uma visibilidade que exclui”, conta Leandrinha.
Porta-voz do Fórum de Empresas e Direitos LGBT+, Reinaldo Bulgarelli admite: “as pessoas LGBTS+ têm razão em esperar mais do mundo empresarial, que ainda é careta e não gosta de diversidade.”
O fato de as empresas sumirem com suas ações após o mês do Orgulho é um sintoma, segundo Bulgarelli, de um problema de comunicação. “As companhias estão ainda aprendendo a criar um ambiente realmente diverso e inclusivo. É um trabalho que demora.”
Criado em 2013, o fórum congrega 130 companhias de diferentes setores, como Avon, Coca-Cola, Itaú, Bayer e Microsoft, só para citar algumas. Elas têm a missão de cumprir dez compromissos que incluem a contratação e a capacitação de pessoas LGBTs+, a promoção de um ambiente de igualdade de oportunidades e a promoção de campanhas sobre o tema.
“Falar de LGBT em junho já é uma grande conquista. Outros avanços virão”, prevê Bulgarelli. Um deles, diz a advogada gaúcha Maria Berenice Dias, seria a tramitação célere com discussão ampla pela sociedade do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero.
O projeto de lei amparado por 100 mil assinaturas de brasileiros e estruturado por Dias, quando esta ainda presidia a Comissão de Diversidade Sexual da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em 2018, busca criar uma legislação que assegure os direitos da população LGBT+ no país.
“Tudo o que a comunidade conquistou foi pela via judicial na figura do STF, o que se mostra muito frágil”, afirma Dias. “O Estatuto regula todas as questões: da LGBTfobia à Previdência.”
Sem nenhuma movimentação desde março de 2019, a proposta está na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor do Senado e aguarda parecer do senador Paulo Rocha (PT-PA), relator do projeto.
Rocha, por meio de sua assessoria, disse que a pandemia de Covid-19 afetou a tramitação e a realização de audiências públicas sobre o estatuto. “A visibilidade não vem de uma vez só”, diz a ativista Indianara Siqueira, do Rio. “A luta é para que não haja retrocessos.”