Após assassinato de sargento, PM promove carnificina no Amazonas
Maioria de ao menos sete mortos tinha de 17 a 27 anos e era negro ou pardo
Um sargento da PM em Tabatinga (1.106 km de Manaus) foi assassinado em 12 de junho no centro da cidade, enquanto fazia um bico como segurança. Nas horas seguintes, seus colegas de farda mataram ao menos sete pessoas, das quais três foram jogadas no lixão após tortura. Eles ainda invadiram e vandalizaram casas, ameaçaram familiares dos mortos, adulteraram atestado de óbito e impuseram a lei do silêncio.
Essa é a conclusão após cinco dias de conversas da reportagem da Folha com familiares, testemunhas, moradores e autoridades da tríplice fronteira, uma estratégica porta de entrada no Brasil para a cocaína peruana e para o skunk (maconha mais potente) colombiano.
Por segurança, diversas conversas ocorreram em Leticia, na Colômbia. Apenas o pai de um dos jovens torturados e mortos concordou em falar sem a proteção do anonimato.
A onda de violência teve início com a morte do sargento Michael Flores Cruz, 36. Por volta do meio-dia daquele sábado, ele estava na região portuária de Tabatinga quando foi alvejado com dois tiros, um deles na cabeça. Outro PM que estava ao seu lado levou um tiro no ombro, mas reagiu e matou o atirador.
Logo após o assassinato, um áudio distribuído via WhatsApp fez a convocação: “Todos os PMs que estiverem de folga desloquem-se para o 8º Batalhão para manter uma reunião aqui. Nosso colega M. Cruz foi a óbito”.
Começava uma caçada a supostos comparsas do atirador, embora testemunhas acreditem que os alvos incluíssem também jovens com passagem pela polícia sem aparente relação com o assassinato.
Muitos PMs agiram à paisana e usavam capuz para evitar identificação. Participaram homens das cidades vizinhas de Benjamin Constant e Atalaia do Norte, além da Rocam (Rondas Ostensivas Cândido Mariano), a unidade mais violenta da polícia amazonense.
Em uma das casas invadidas, um PM disse a familiares: “Agora é a lei do Bolsonaro: bandido bom é bandido morto”. Em outro local, os policiais suspeitaram que moradores estivessem gravando a ação e desistiram de levar três homens rendidos e deitados no chão.
A ação truculenta respingou até na Colômbia, que tem fronteira seca com Tabatinga. No bairro Porvenir, de Leticia, homens da Rocam apontaram armas contra cidadãos colombianos. O caso, denunciado à Polícia Nacional da Colômbia, está sob investigação e foi relatado a Bogotá.
No lado brasileiro, de acordo com testemunhas, três pessoas foram assassinadas a tiros por PMs sem oferecer resistência naquela tarde. Duas mortes ocorreram em via pública, e outra, dentro de casa. Um deles, Bruno de Souza Aguela, teria apenas 17 anos.
Além dos quatro mortos, outros quatro jovens foram levados por PMs, sempre segundo testemunhas. Um deles, Gabriel Pereira Rodrigues, 18, foi visto dentro de uma viatura, aparentemente sendo obrigado pelos policiais a indicar o local de residência de outros jovens.
Ele apareceu entre os três mortos encontrados na madrugada do dia seguinte (13) no lixão da cidade. Além de tiros na cabeça, apresentavam sinais de tortura. Rodrigues estava nu, com o ânus perfurado. Clisma Ferreira, 17, foi degolado –apenas a pele unia o corpo à cabeça. Antonio Rengifo Vargas, 20, estava esfaqueado e tinha o rosto machucado, entre outros ferimentos.
Ao menos seis mortos tinham entre 17 e 27 anos e eram negros ou pardos (incluindo descendentes de indígenas). A reportagem não localizou os dados de dois deles. Um tinha o apelido de Caniggia e foi morto dentro de casa. A polícia não forneceu dados do atirador que matou o sargento.
“Imagino o menino chamando pelo pai, chamando pela mãe. Essa é a minha revolta, não posso entender como existe um ser humano dessa forma”, disse à reportagem o pai, o empresário de turismo Antonio Rengifo Baldino, 50. Ele assegura que seu filho, um ex-recruta do Exército peruano, trabalhava com ele e não tinha ficha criminal.
Cidadão peruano-colombiano, ele acusa a polícia de adulterar laudo para esconder a tortura, que teria sido realizada dentro do batalhão da PM. O documento, ao qual a Folha teve acesso, deixou de registrar diversos ferimentos e declara que o exame foi realizado na presença da delegada da Polícia Civil Mary Anne Mendes Trovão. Procurada pela reportagem, ela alegou sigilo nas investigações para não responder às perguntas enviadas.
Em paralelo, a PM agiu para abafar o banho de sangue. A corporação espalhou a versão de que o sargento morreu durante um assalto, embora a própria polícia estivesse em alerta contra ataques da facção criminosa Comando Vermelho (CV).
No final de semana anterior à matança, o CV lançou uma série de ataques em Manaus e em outras oito cidades do Amazonas em reação à morte de um líder da facção pela PM. Foram incendiados viaturas policiais, ônibus, prédios públicos e agências bancárias. Na capital amazonense, o transporte público parou de circular por três dias.
Na contra ofensiva, a polícia amazonense prendeu ao menos 82 pessoas, incluindo três supostas lideranças do CV no Rio de Janeiro, em operação com a polícia fluminense. Nessa ação, em 18 de junho, um adolescente de 16 anos foi baleado na cabeça dentro de casa. Em Manaus, um motorista de ônibus desarmado de 50 anos foi morto em casa por policiais que tentavam localizar seu filho.
Até agora, a operação abafa deu certo. A morte do sargento Cruz recebeu pouca atenção da imprensa amazonense e foi descrita como tentativa de assalto. Amigos e familiares relataram que não fizeram boletim de ocorrência, pois não distinguem a Polícia Civil da Militar. “Por que vou fazer BO se a polícia mesmo está matando?”
Procurada, a Defensoria Pública do Amazonas, que tem representação em Tabatinga, não respondeu às perguntas enviadas por escrito. Via áudio de WhatsApp, a assessoria de imprensa afirmou que “não houve procura de familiares questionando aumento de violência mais do que o natural do que vem ocorrendo, pelo menos até aqui”. O Ministério Público do Amazonas e a Polícia Civil também se recusaram a comentar as mortes, alegando sigilo.
A PC se recusou a informar quantos homicídios ocorreram na cidade neste ano. A Folha obteve essa informação de autoridades colombianas: foram 59 assassinatos em Tabatinga desde janeiro. No mesmo período, Leticia, considerada um oásis de tranquilidade pelos brasileiros, registrou 6 assassinatos.
O Comando Militar da Amazônia (CMA), que tem o Comando de Fronteira Solimões sediado em Tabatinga, e a Força Nacional de Segurança Pública, que atua no porto e no aeroporto da cidade, informaram, via assessoria de imprensa, que o assunto é da esfera estadual.
A Superintendência da PF no Amazonas, que mantém uma delegacia em Tabatinga, não respondeu ao pedido de informações enviado por email.
Apenas duas instituições procuradas pela reportagem da Folha se manifestaram: a Igreja Católica e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
No caso da igreja, o porta-voz foi dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus e ex-secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Por coincidência, ele estava em Tabatinga, para participar das homenagens ao arcebispo emérito do Alto Solimões, dom Alcimar Caldas Magalhães, morto no dia 20.
“Só vim saber aqui em Tabatinga da violência e dessa matança que está ocorrendo. Isso é muito preocupante. Vemos a violência aumentar cada vez mais no Amazonas, mas não vemos uma iniciativa dos governos em relação a isso”, afirmou dom Steiner.
“Se nós começarmos a fazer justiça pelas próprias mãos para defender determinados grupos, aonde vamos chegar?”, questiona o arcebispo.
A subseção da OAB-AM no Alto Solimões informou que, após as mortes, fez um anúncio para que as famílias atingidas pela ação da PM a procurassem, mas ninguém tomou essa iniciativa. O colegiado também entrou em contato com o batalhão em Tabatinga para um diálogo extrajudicial, sem resposta.
Comando em Tabatinga
Esta é a terceira chacina atribuída à PM sob o governo Wilson Lima (PSC), um ex-apresentador de programa policial estreante na política que se elegeu na onda bolsonarista.
Em outubro de 2019, a Rocam matou 17 pessoas no bairro Crespo, em Manaus, na ação mais violenta da corporação. O Ministério Público apontou fortes indícios de que eles foram executados e de que a cena do crime foi manipulada.
Em agosto de 2020, ao menos quatro mortes e outras ações ilegais atribuídas à PM levaram a Justiça Federal a determinar que a PF e a Força Nacional adotassem medidas de proteção para ribeirinhos e indígenas da região.
Em Tabatinga, o 8º Batalhão da Polícia Militar (BPM) está sob o comando do tenente-coronel Eddie César, 48. Ele foi transferido para a cidade após ter sido denunciado por se envolver sexualmente com alunas do Colégio Militar da Polícia Militar 8, de ensino médio, onde ele trabalhava como diretor.
O caso ocorreu em março de 2019, quando circularam áudios e mensagens de WhatsApp em que ele propunha fazer sexo em troca de dinheiro. À época, ele admitiu as conversas, mas afirmou que eram endereçadas a mulheres de mais de 30 anos. Em seguida, foi para a fronteira, remoção considerada uma punição.
Na Justiça do Amazonas, ele responde a dois processos por lesão corporal. Em um deles, disparou na perna de um adolescente de 17 anos, em Barcelos (AM). Nos autos, afirmou que o rapaz não obedeceu à ordem de parar.
O caso ocorreu em 2014, durante uma fiscalização de bares junto ao Conselho Tutelar. Segundo o Ministério Público do Amazonas, a vítima estava de costas e não oferecia risco a ninguém.
Na segunda-feira (28), a Folha ligou para o celular do comandante Eddie. Antes de interromper a entrevista, o tenente-coronel disse que a PM matou quatro pessoas no dia 12, após o assassinato do sargento, mas negou envolvimento com os corpos encontrados no lixão.
“A ação da Polícia Militar se resumiu ao dia 12 de junho. E já foi comprovado, diante da intervenção militar, de quatro óbitos, além do sargento”, afirmou.
O tenente-coronel disse que houve resistência nas quatro mortes cometidas pela PM. “Foi apresentado armamento, foi apresentado tudo que foi necessário.”
Sobre as mortes no lixão, afirmou que a investigação é atribuição da Polícia Civil.
“Acho que já dei informações suficientes para fazer o seu trabalho aí, coisa que não fiz com nenhum órgão de imprensa em Tabatinga. Então, a gente encerra por aqui, tá ok?”
Por Fabiano Maisonnave