Ações de professora e dona de casa podem mudar regras da internet no Brasil
Nesta semana, o STF (Supremo Tribunal Federal) promoveu dois dias de audiência pública sobre os dois temas por trás dos processos movidos tanto por Lourdes como por Aliandra contra o Facebook e o Google, respectivamente
Jair Bolsonaro era apenas um deputado do baixo clero, e hordas de golpistas na capital federal só poderiam estar numa cena de ficção distópica quando a dona de casa Lourdes Paviotto Correa, de Capivari (SP), descobriu que alguém havia criado um perfil falso com seu nome no Facebook.
Quatro anos antes, em 2010, o WhatsApp engatinhava, e nem existia o termo fake news, quando a professora de português Aliandra Vieira, de Belo Horizonte, foi alvo de uma comunidade no Orkut com comentários de desafetos seus no ensino médio.
As duas, agora, estão no centro de um debate que pode mudar os rumos da internet no Brasil e criar balizas para a liberdade de expressão na rede.
Nesta semana, o STF (Supremo Tribunal Federal) promoveu dois dias de audiência pública sobre os dois temas por trás dos processos movidos tanto por Lourdes como por Aliandra contra o Facebook e o Google, respectivamente.
Trata-se da responsabilidade de ferramentas de internet pelo conteúdo gerado pelos usuários e da possibilidade de remoção a partir de notificação extrajudicial de conteúdos que possam ofender direitos de personalidade, incitar o ódio ou difundir notícias falsas.
Os dois temas estão relacionados ao Marco Civil da internet, mais especificamente do seu artigo 19, que isenta as plataformas de responsabilidade civil por danos causados por conteúdo postado por terceiros -a não ser que elas tenham descumprido decisão judicial.
Após a emergência da extrema direita e do uso das redes sociais como ferramenta política, o artigo entrou na mira do debate sobre a regulamentação das plataformas, que alguns setores têm visto como tímida -e o caso de Lourdes e Aliandra foi o pretexto para a discussão.
Convocada pelos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, a audiência pública habilitou mais de 40 pessoas para debater o tema ao longo de dois dias no Supremo Tribunal Federal.
Advogado de Lourdes, Bruno Forti, 36, era um dos convidados, mas optou por falar por videoconferência.
“Financeiramente não valia a pena ir até Brasília”, explica.
Com escritório em uma casa em Capivari, cidade de 56 mil habitantes no interior de São Paulo, ele calcula que irá ganhar R$ 400 ao final do processo, se ganhar.
Isso porque hoje Forti trabalha com questões empresariais, mas, em 2014, chegou à história de Lourdes por causa do convênio de assistência judiciária gratuita da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
A dona de casa tinha descoberto que alguém havia criado um perfil em seu nome no Facebook. E o farsante usava a página para ofender familiares e conhecidos dela na cidade.
“Um monte de gente foi na casa dela cobrar”, lembra o defensor.
Em nome da cliente, Forti pediu à Justiça a exclusão do perfil, o que ocorreu, e fez uma outra solicitação que foi basicamente o que arrastou o processo até agora, quase dez anos depois: um pedido de indenização por danos morais, negado em primeira instância e aceito na segunda.
Pedido semelhante fez a professora Aliandra Cleide Vieira, que leciona a disciplina de português.
Em 2010, ela soube por alunos que havia uma comunidade na rede Orkut com o nome “Eu odeio a Aliandra”.
Ela conta que o fato chegou ao conhecimento de colegas, da direção e de outros alunos -até mesmo os de outra escola na qual ela lecionava.
Estudantes que gostavam da professora criaram uma outra comunidade para defendê-la, “Eu odeio quem odeia a Aliandra”.
A situação, diz ela, “gerava conflito entre os próprios alunos e desconforto na convivência cotidiana dentro da sala de aula, a qual, por outro lado, deveria ser um local de respeito e empatia”.
Aliandra enviou uma notificação ao Google, responsável pelo Orkut, para que a página fosse retirada, mas isso não aconteceu.
A professora então entrou com uma ação pedindo a remoção da comunidade e também uma indenização.
As plataformas de internet argumentam que, se forem responsáveis pelo conteúdo postado por terceiros, podem acabar sendo obrigadas a adotar uma visão restritiva da moderação, banindo mais conteúdos por receio de ter que pagar multa depois.
O Google cita o exemplo do site Reclame Aqui, que publica queixas de consumidores sobre empresas. Se toda firma que se considerar prejudicada por um comentário postado ali pedir a remoção do comentário, o site deixaria de existir.
Em relação ao caso de Aliandra, aponta que em instâncias diferentes do Judiciário houve decisões também distintas, o que mostraria que havia uma zona cinzenta ali que cabia à Justiça definir.
O Facebook foi procurado, mas não se pronunciou.
A preocupação com uma possível autocensura das plataformas caso seja modificado ou revogado o artigo 19 do Marco Civil é compartilhada por organizações em defesa da liberdade de expressão, como a Artigo 19.
A advogada especialista em direito digital Patricia Peck discorda.
Ela cita que hoje cada plataforma tem um prazo para remover conteúdo, uma política diferente e que, muitas vezes, demandas do Judiciário não são atendidas sob a justificativa de impossibilidade técnica.
“Há um grande risco de se ferir a dignidade humana da forma como está hoje”, diz.
Já para Aliandra, a professora de português no centro da discussão, a questão é de ordem prática.
“Essa repercussão [do caso] seria muito válida para que os usuários pensassem duas vezes antes de promoverem o ódio nas redes sociais, que pode provocar dores as quais, talvez, jamais serão curadas”, declara.
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ENTENDA O QUE ESTÁ EM DEBATE
Qual o debate sobre a regulação das redes sociais?
Sob o impacto dos atos golpistas do 8 de janeiro, o governo Lula elaborou proposta que obriga as redes a removerem conteúdo que viole a Lei do Estado Democrático, com incitação a golpe, e multa caso haja o descumprimento generalizado das obrigações. O Executivo encaminhou a proposta para o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do PL 2630, o chamado PL das Fake News, que irá discutir o texto com lideranças na Câmara.
O que é o Marco Civil da Internet?
É uma lei com direitos e deveres para o uso da internet no país. O artigo 19 do marco isenta as plataformas de responsabilidade por danos gerados pelo conteúdo de terceiros, ou seja, elas só estão sujeitas a pagar uma indenização, por exemplo, se não atenderem uma ordem judicial de remoção. A constitucionalidade do artigo 19 é questionada no STF.
Qual a discussão sobre esse artigo?
A regra foi aprovada com a preocupação de assegurar a liberdade de expressão. Uma das justificativas é que as redes seriam estimuladas a remover conteúdos legítimos com o receio de serem responsabilizadas. Por outro lado, críticos dizem que a regra desincentiva as empresas e combater conteúdo nocivo.
A proposta do governo impacta o Marco Civil?
O entendimento é que o projeto a ser incluído do PL das fake news abra mais uma exceção no Marco Civil. Hoje, as empresas são obrigadas a remover imagens de nudez não consentidas mesmo antes de ordem judicial e violações de direitos autorais. O governo quer que conteúdo golpista também se torne uma exceção à imunidade concedida pela lei, mas as empresas não estariam sujeitas à multa caso um ou outro conteúdo violador fosse encontrado na plataforma, só se houver descumprimento generalizado.
Como o Congresso tem reagido à discussão?
Parte do Legislativo critica a proposta do Planalto por acreditar que a responsabilização levaria as empresas a se censurarem para evitar sanções. Além disso, são estudadas medidas como a criação de um órgão regulador para as plataformas e a imunidade parlamentar nas redes, ponto defendido por Arthur Lira, presidente da Câmara.
Por Angela Pinho