Sem carnaval de rua, folia fica restrita a quem pode pagar por festas privadas
Prefeituras dos principais destinos carnavalescos suspenderam desfiles de blocos
No segundo Carnaval em meio à pandemia de Covid-19, as restrições sanitárias nas grandes cidades criaram o que estudiosos de cultura popular e organizadores de blocos classificam como uma espécie de segregação social. Eles criticam o que chamam de “cancelamento seletivo”, que, na prática, define quem tem e quem não tem direito à folia.
O recente avanço da variante ômicron, que criou uma curva ascendente de infectados, fez com que prefeituras dos principais destinos carnavalescos do país suspendessem os desfiles de blocos, que atraem multidões pelas ruas.
Por outro lado, o avanço da imunização e a criação do passaporte da vacina basearam a liberação de festas fechadas, desde que os protocolos sanitários sejam seguidos. Segundo a Prefeitura de São Paulo, no carnaval de rua não haveria como exigir e fiscalizar o comprovante de vacinação.
Perguntada sobre como será feita a fiscalização das festas particulares, a prefeitura afirmou que agentes da Vigilância Sanitária realizam diariamente ações. “Caso o munícipe identifique irregularidade em festas e eventos, as denúncias podem ser feitas pelo telefone 156 ou pelo portal 156.”
Os ingressos para as festas de carnaval chegam a R$ 700 em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte.
No Rio de Janeiro, o valor é cobrado para pular em eventos como o Carnaval das Artes, o Grande Baile de Máscaras e o Carnarildy, que incluem shows de celebridades habituadas a reunir foliões em cima de trios elétricos, como Anitta e Ludmilla.
Há valores ainda mais altos para camarotes de eventos privados em outras cidades. Em Ubatuba, no litoral paulista, o camarote do Carnaval no Cafe de La Musique para seis pessoas custa até R$ 3.000.
Na capital paulista, blocos que costumam atrair multidões pelas ruas são anunciados como atrações em festas fechadas. Uma cervejaria na zona norte anunciou uma programação extensa de blocos carnavalescos a R$ 10 a entrada.
Em São Paulo, a prefeitura chegou a anunciar o cadastramento dos blocos de carnaval, mas recuou no começo de janeiro após o avanço da variante ômicron. Antes do anúncio oficial, os blocos já haviam cancelado os desfiles por falta de um plano da administração municipal para garantir a segurança sanitária dos foliões.
No Rio de Janeiro, o cancelamento do carnaval de rua foi anunciado dois dias antes.
As regras têm causado indignação e mobilizado organizadores de blocos em São Paulo. “Abominamos o cancelamento seletivo. Mais um triste retrato de como as coisas funcionam neste país”, diz Di Leporati, fundador do Bloco Cecílias e Buarques.
Alessa, co-fundadora do bloco Ritaleena, lamenta a “lógica de cidade que adora um camarote e agora vende uma ilusão de segurança na forma de protocolo sanitário” ao se referir às exigências que permitem as festas fechadas. “Os blocos terão que reafirmar seus territórios enquanto coisa pública”, diz.
Segundo o historiador e pesquisador de cultura popular brasileira Bruno Baronetti, a proibição do carnaval de rua ao mesmo tempo em que são permitidas as festas pagas é uma forma de coibir manifestações populares, apesar dos argumentos sanitários. “O Brasil tem tradição de ocupar o espaço público com festas como um ato de resistência”, diz.
O historiador chama atenção também para o viés político que o carnaval de rua costuma seguir, em que fantasias se transformam em protestos, comportamento adiado por mais um ano. “[O cancelamento dos blocos] inibe aquilo que pode gerar atrito ou crítica”, diz. “Esse seria um carnaval de críticas e reflexões sobre onde estamos neste momento no Brasil”, continua.
“Os desfiles são expressões culturais populares das populações subalternizadas e negras que historicamente sofrem com o racismo e têm o carnaval como o momento de maior visibilidade”, diz o Baronetti. “É uma proibição de algo feito para a população mais pobre”, continua.
Para o carnavalesco e comentarista Milton Cunha, o carnaval de 2022 ficará conhecido como “você pode e eu não posso”. “O pessoal que vai aos blocos não tem dinheiro para comprar o ingresso para essas festas, então sobraram para eles os blocos não autorizados”, diz.
Neste sábado (19), ao menos dois blocos desfilaram de forma clandestina pelas ruas do Rio de Janeiro. Em nota, a Secretaria Municipal de Ordem Pública da Prefeitura do Rio disse que guardas municipais atuaram na desmobilização de um bloco no centro do Rio, na praça da Cruz Vermelha.
A proibição dos blocos e a liberação das festas pagas criou uma espécie de revanchismo que se traduz nos desfiles clandestinos, segundo Cunha.
Apesar dos sinais de arrefecimento da onda de contaminação causada pela ômicron, o infectologista do Hospital das Clínicas e diretor da Sociedade Paulista de Infectologia Evaldo Stanislau Affonso de Araújo alerta para o risco das festas fechadas de carnaval. “Devido ao grande fluxo de turistas que o Brasil recebe nesta época, essas festas podem levar à transmissão de subvariantes da ômicron, como a BA.2”, diz.
Além disso, o infectologista chama atenção para a tendência das pessoas deixarem as máscaras de lado nesses eventos. “O clima de carnaval é incompatível com a obediência aos protocolos necessários”, diz.
PREFEITURA NEGA FAVORECIMENTO
Nesta quarta-feira (23), o governador João Doria (PSDB) atribuiu às prefeituras a função de fiscalizar festas clandestinas e aglomerações durante o feriado de Carnaval.
“O carnaval é uma decisão das prefeituras. A orientação do estado é evitar festas e aglomerações. Se houver algum desrespeito [às recomendações], são as prefeituras que devem acionar a Polícia Militar”, disse o governador.
A Prefeitura de São Paulo afirmou que a previsão de atrair 15 milhões de pessoas de várias regiões do Brasil e de outros países para o carnaval paulistano embasou a decisão de cancelar os desfiles de blocos como uma forma de conter a transmissão da variante ômicron. A liberação da programação seria uma “irresponsabilidade”, segundo a administração.
“Estou seguindo o que a Vigilância Sanitária orienta, independentemente do evento ser privado com a cobrança de ingresso ou até mesmo gratuito. É necessário que apresentem o passaporte da vacina. Em relação aos blocos, [eles] não conseguem pedir e fiscalizar o comprovante da vacina no carnaval de rua com uma população de 15 milhões de pessoas. Já o evento privado, que tem esta obrigação, estará sob a fiscalização da Vigilância Sanitária”, afirmou o prefeito Ricardo Nunes (MDB).
Segundo a gestão, o setor privado não foi favorecido. Na visão da prefeitura, restaurantes, bares e festas noturnas também foram afetados com a não realização dos blocos, pois esses setores tinham grande aumento de público com os turistas que viriam para a cidade curtir o carnaval de rua.
Além disso, a prefeitura ressaltou que o cancelamento do carnaval de rua ocorreu após longo processo junto a gestores dos blocos, e era impossível prever uma queda nos casos de contaminação às vésperas do carnaval. “A logística para realizar um evento como o carnaval é muito complexa e, por isso, demanda tempo hábil para a organização”, informou a administração em nota.
Pelas regras atuais, os organizadores de eventos devem limitar o público a 70% da capacidade do local e exigir o comprovante de vacinação, assim como o uso de máscaras e álcool em gel.
A gestão municipal informou ainda que a Secretaria Municipal das Subprefeituras “ampliou e qualificou as ações de fiscalização de comércio ilegal nas ruas e logradouros públicos nos principais pontos comerciais da cidade”. “Ressaltamos que, caso ocorram desfiles ilegais de blocos de rua durante os dias de ponto facultativo do carnaval 2022, a Polícia Militar será acionada.”
Por Mariana Zylberkan