Governo Bolsonaro diz ao STF que tese indígena contra marco temporal gera insegurança jurídica
A afirmação foi feita pelo chefe do órgão, Bruno Bianco
A AGU (Advocacia-Geral da União) do governo Jair Bolsonaro defendeu nesta quarta-feira (1º) que uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) contra a imposição de um marco temporal para definir quais terras indígenas devem ser demarcadas irá gerar insegurança jurídica e desrespeitará os precedentes da própria corte sobre o tema.
A afirmação foi feita pelo chefe do órgão, Bruno Bianco, que falou em nome do governo federal no julgamento que está em curso no Supremo e é considerado um dos mais importantes processos relativos ao assunto dos últimos anos.
A análise do caso será retomada nesta quinta-feira (2). Antes de os ministros começarem a votar, ainda faltam 17 entidades usarem a palavra, além da PGR (Procuradoria-Geral da República).
As sustentações orais realizadas nesta quarta deixaram claro que as divergências não giram em torno apenas do mérito da discussão, mas também sobre o histórico do STF em relação à constitucionalidade da existência de um marco temporal a ser observado para demarcação de terras.
De um lado, Bianco afirmou que em 2009 o Supremo reconheceu o direito dos indígenas em relação à área conhecida como Raposa Serra do Sol, em Roraima, porque eles estavam no local desde antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Assim, segundo o advogado-geral da União, o STF definiu as balizas para demarcações e decidiu que elas só podem ocorrer em situações em que as populações tradicionais já estavam naquela região em 1988.
O advogado Rafael Modesto, da Comunidade Indígena Xokleng, da terra Ibiramala Klaño, por sua vez, afirmou que a interpretação de Bianco é uma tentativa de ressignificar aquela decisão favorável às populações tradicionais.
“As condicionantes serviram, e ficou claro, tão somente para dar operacionalidade àquele julgado.
Destaque-se que o marco temporal parte do negacionismo, da negação à ciência antropológica, que conta com método próprio e é a única a dizer os limites das terras indígenas”, afirmou Modesto.
O julgamento do caso foi iniciado na semana passada, apenas com a leitura do relatório do processo pelo ministro Edson Fachin, que já votou contra o marco temporal quando o julgamento começou no plenário virtual.
Nesta quarta, houve 22 sustentações orais pelas partes do processo, pela União e por entidades que figuram como amici curiae na ação –a maioria defensores das causas indígenas.
Nesta quinta, devem usar a palavra associações vinculadas ao agronegócio, como a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e a Sociedade Rural Brasileira.
A decisão a ser tomada pelo STF no caso valerá para todo o país, uma vez que foi aplicada repercussão geral ao caso. Atualmente, há 82 processos parados no Judiciário à espera de uma definição sobre a possibilidade de aplicação ou não da tese do marco temporal.
O debate chegou ao Supremo após o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) usar a regra de ocupação ou não das terras indígenas em 1988 para impor uma derrota à Comunidade Xokleng.
À época, a Funai (Fundação Nacional do Índio) recorreu da decisão e foi neste recurso que o STF resolveu fixar a repercussão geral.
O órgão do governo federal foi ao Supremo contra a ordem judicial do TRF-4 que concedeu ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (antiga Fatma, Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente) o direito à reintegração de posse do local que estava ocupado pelos indígenas.
Modesto afirmou ao STF que a decisão foi equivocada porque desconsiderou o histórico de violência e expulsão sofrido pelos Xokleng.
“Os índios eram caçados, amarrados de ponta cabeça e cortados ainda vivos a facão do púbis à cabeça, não sem antes jogar dinamite nas aldeias. Até casos de crucificação de indígenas são relatados. Esse foi o modus operandi para expulsar indígenas de suas terras. Vendiam terras ocupadas por indígenas como se devolutas fossem e depois os expulsavam”, afirmou.
Bianco, porém, afirmou que no julgamento sobre a Raposa Serra do Sol ficou definido que os indígenas que não estavam nas terras em 1988 só podem ter direito a elas caso comprovem que houve “esbulho renitente”.
“O revolvimento das salvaguardas institucionais firmadas no caso Raposa Serra do Sol tem o potencial de gerar insegurança jurídica e ainda maior instabilidade nos processos demarcatórios”, disse.
O advogado-geral da União pediu que o plenário do STF suspenda a eficácia da decisão de Fachin que sustou os efeitos de um parecer emitido pela AGU para orientar os demais órgãos da administração pública em favor do marco temporal.
Ele afirmou ainda que a corte deve levar em consideração que já há um debate sobre o marco temporal no Legislativo. “A necessidade de preservação da segurança jurídica fica acentuada quando se considera que há debate parlamentar em curso na Câmara dos Deputados.” Segundo ele, “é de todo prudente se aguardar tal trâmite parlamentar”.
Já Deborah Duprat, que foi vice-procuradora-geral da República e já ocupou interinamente a chefia da PGR, falou em nome da Associação Juízes para a Democracia e defendeu a inconstitucionalidade da tese do marco temporal.
“A Constituição de 88 inaugura uma sociedade plural, onde a ideia de assimilação tem que ser afastada, porque é uma ideia de supremacia racial. Os povos indígenas são sujeitos de direito plenos, mas para isso, precisam de seus territórios”, afirmou.
Luiz Henrique Eloy Amado, conhecido como Eloy Terena, por sua vez, usou a palavra em nome da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e afirmou que adotar o marco temporal é “ignorar todas as violações a que os indígenas foram e estão submetidos”.
“É preciso perguntar: se determinada comunidade não estava em sua terra na data de 5 de outubro, onde elas estavam? Quem as despejou dali? Basta lembrar que estávamos saindo do período da ditadura, onde muitas comunidades foram despejadas de suas terras”, disse.
A advogada indígena Samara Carvalho Santos, do Mupoiba (Movimento Unido dos Poivos e Organizações Indígenas da Bahia), também lembrou o histórico de expulsões de aldeias de suas regiões.
“Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar esse passado muito recente no qual sequer tínhamos o direito de escolher os nossos próprios destinos.”
Grupos de indígenas acompanharam a sessão do tribunal na Praça dos Três Poderes. Na semana passada, estava montado um mega-acampamento em Brasília. Como o início do caso foi adiado, foi organizado um menor para esta semana.
Nesta quarta, eles desceram em direção à sede do STF e se concentraram em frente ao tribunal. Em dois momentos, houve princípio de confusão e de confronto de indígenas com pessoas contrárias às suas causas. A Polícia Militar interveio com uso de spray de pimenta.
Texto: Matheus Teixeira