Garimpo no rio Madeira é menos destrutivo do que mineração em terras indígenas
Custo da operação também é menor, mas ainda há danos ambientais no processo
As imagens das centenas de balsas perfiladas sobre o rio Madeira são impressionantes, mas revelam apenas parte da história. Ao contrário da mineração nas terras indígenas, a busca pelo ouro não é feita por bandidos capitalizados que chegam de avião e helicóptero, mas principalmente pelos ribeirinhos da região. O grande vilão ambiental ali é o governo federal e as suas usinas hidrelétricas Jirau e Santo Antônio.
Não se trata de uma “invasão garimpeira”, como ocorre na Terra Indígena Yanomami (RR/AM). A maioria das balsas de pequeno porte, senão todas, hoje concentradas em Autazes (AM) já estavam trabalhando ao longo do rio Madeira, entre Rondônia e Amazonas.
Elas apenas se deslocaram para lá porque alguém “bamburrou”, ou seja, achou uma quantidade de ouro acima da média. Na Amazônia, essa corrida do ouro tem nome: fofoca. Em 2016, quando a Folha visitou uma dessas fofocas, a concentração era de 700 balsas, parecida à deste ano. Mas o tema do garimpo estava distante do ciclo de notícias, e poucos prestaram atenção.
As balsas perfiladas também sugerem que se trata de um grande empreendimento único. Não é assim. A explicação está na ética do garimpo. Elas ficam lado a lado para assegurar que ninguém tenha vantagem sobre o outro durante a aspiração do fundo do leito do rio, onde está depositado o ouro.
A imensa maioria dos garimpeiros tem uma ou poucas balsas, tocadas em família. Os trabalhadores contratados operam junto com os donos das balsas e recebem de acordo com a produção. É uma rotina extenuante, sob um barulho ensurdecedor dos motores ligados 24h por dia em meio ao nauseante cheiro de óleo diesel.
O custo para construir uma balsa de garimpo no rio Madeira é relativamente baixo, cerca de R$ 30 mil. Trata-se um investimento muitas vezes menor do que as escavadeiras (PCs) que infestam e destroem os rios da Terra Indígena Munduruku. Cada máquina custa em torno de R$ 500 mil, com um consumo de diesel bastante superior do que os pequenos motores utilizados nas balsas.
São as PCs os maiores protagonistas da destruição na busca pelo ouro, principalmente na bacia do Tapajós, onde moram os mundurukus. Em poucas semanas, são capazes de destruir e desviar quilômetros de igarapés, abrindo enormes cicatrizes na floresta amazônica. Não se trata mais de garimpo artesanal: é mineração ilegal.
O impacto social também é menor do que no território yanomami. O garimpo no Madeira não leva à criação de grandes acampamentos ilegais com pistas de pouso em meio a uma população indígena vulnerável e isolada. É um rio pontilhado por diversas cidades e de navegação intensa. Os indígenas do Madeira, como os muras, estão mais calejados com a presença do “branco”.
Ainda que o garimpo de balsa no Madeira destrua bem menos, há danos ambientais. Depois de ser aspirada e passar por uma espécie de tapete para a retirada do ouro, a lama volta de forma concentrada para o rio. O “arroto”, como esse detrito é chamado, costuma formar ilhotas no leito do rio. A maioria, no entanto, desaparece no ciclo de cheia.
Há indícios de que o rio esteja contaminado por mercúrio. Uma pesquisa recente em um dos afluentes do Madeira mostra que os peixes têm índices de mercúrio acima do permitido pela OMS (Organização Mundial da Saúde). A origem, porém, não é exclusiva do garimpo. Os desmatamentos e as queimadas também levam o metal, que ocorre naturalmente no solo amazônico, para os cursos d’água.
O mercúrio continua sendo usado em larga escala no garimpo, mas a adoção de um instrumento chamado cadinho, prática adotada já há alguns anos, diminuiu a quantidade que vai para a natureza ao permitir a reutilização.
Em entrevista em 2020, o coordenador do Laboratório de Ictiologia e Ordenamento Pesqueiro do Vale do Rio Madeira da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), Marcelo dos Anjos, disse que a regulamentação é o melhor caminho para o Madeira. “A ilegalidade promove um impacto muito maior. O que se deveria fazer é regular, por meio de cooperativas de garimpeiros, e criar protocolos que eles possam seguir a fim de minimizar o impacto previsto da atividade.”
Esse processo, no entanto, se arrasta há anos, em meio à divergência de atribuições entre o governo do Amazonas e Brasília.
O que não demorou para sair foi a licença ambiental do Ibama para as duas enormes usinas hidrelétricas construídas pelos governos petistas próximas de Porto Velho (RO). Como é a praxe de obras desse porte, trouxeram profundos impactos.
O grande símbolo desse desastre é a dourada, bagre que faz a maior migração de água doce já registrada pela ciência, de até 11 mil km. O barramento traz sério risco de levá-la à extinção no Madeira, segundo pesquisas.
Irritado com a demora do Ibama em liberar a licença por causa do impacto na ictiofauna, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou o órgão, durante reunião com seu conselho político, em 2007: “Agora jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?”. Uma frase que seu principal adversário político, Jair Bolsonaro, assinaria embaixo.
Descendentes de indígenas e de nordestinos que migraram no ciclo da borracha, os ribeirinhos-garimpeiros afirmam que o rio Madeira nunca foi o mesmo depois das usinas.
No ano passado, Elanjo de Souza, que trabalhava em uma balsa em Humaitá (AM) junto com dois filhos adolescentes, me disse que abandonou a roça na várzea e a pesca. “O peixe vai e vem. Quando chega à barragem, como vai passar? Até as plantas não geram mais. Antes, era melancia, milho, tabaco. Agora, a enchente fica mais alta e mata tudo.”
Vulneráveis a pressões do Planalto, as políticas públicas para o Madeira seguem indiferentes à situação precária da população tradicional. É racismo ambiental que chama?
Por Fabiano Maisonnave