Em contraponto a carta psicografada, promotor exibe fala de sobrevivente da Kiss
A promotora mostrou um vídeo com corpos dentro da boate
Durante a fase de debates do julgamento da boate Kiss, a advogada Tatiana Borsa exibiu um vídeo com a narração de uma carta psicografada por uma das vítimas do incêndio. Borsa encerrava a fala da defesa que pediu a absolvição de Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira.
Nesta sexta (10), durante a réplica da acusação, o promotor David Medina da Silva disse que faria um contraponto a carta exibida no dia anterior, defendendo que aquele não seria o momento ou o local adequado para tratar de questão religiosa, mesmo que muitos presentes tenham fé.
“Vamos fazer o contraponto da carta psicografada. Nós ouvimos ontem a voz de um narrador se intitulando porta-voz de uma pessoa morta, mas vamos ouvir a voz de uma pessoa viva?”, disse ele, reproduzindo um trecho do depoimento de Delvani Rosso, 29.
O jovem relatou no último domingo, no júri, o que viveu dentro da boate, como seu irmão Jovani resgatou pessoas no local, puxando homens pelo cinto e mulheres pelos cabelos, para evitar arrancar as peles afetadas pelo calor, e como enfrentou as sequelas a seguir, quando se sentia prisioneiro do próprio corpo.
No trecho exibido nesta sexta, ele conta o que viu ao chegar ao hospital ainda na madrugada da tragédia, que parecia uma cena de guerra, com pessoas queimadas, gritando, ele mesmo pedindo socorro, como as enfermeiras lhe atenderam e tiveram de usar pinça para separar sua camisa grudada na pele e sobre os meses de tratamento.
“Só tentava entender tudo que aconteceu comigo, o porquê de tanta dor, tanto sofrimento. Cheio de sonda, de aparelho, imóvel. Só conseguia olhar, não conseguia engolir a saliva, não conseguia nada. E respirando por um buraco na garganta, a traqueostomia”, contou ele.
O Ministério Público reforçou a tese da acusação, apontando elementos para a tese de que os integrantes da banda Gurizada Fandangueira sabiam dos riscos do artefato pirotécnico e mesmo assim o acenderam, e que os proprietários tinham ciência do uso do mesmo pelo grupo, além de estarem com a casa acima da capacidade e com uma espuma inadequada.
A promotora Lúcia Helena Callegari mostrou um vídeo com os corpos das vítimas dentro da boate, depois da tragédia, o mais chocante do processo, segundo ela.
“Isso que se causou acendendo, pulando, não avisando, trancando, colocando espuma, é isso que se gerou, se assumiu o risco, se matou, se matou, se matou 242 inocentes, 242 anjos que estão aqui comigo. Aqui comigo, neste exato momento, falando por mim. Há muitos anos eu digo, eu quero ser enterrada com essa toga. Digo mais, hoje, quero ser enterrada com isso (mostrando o botton da campanha), ‘Kiss: que não se repita’. Condenem os quatro”, pediu aos jurados.
No começo da tréplica, Borsa falou sobre a questão. Ela chamou a fala do promotor de insensível e citou um colega de quem ouviu que, como livro com as mensagens psicografadas não é prova judicializada, o Ministério Público poderia ter impugnado.
“Isso aqui foram pais que foram a Minas Gerais, naquele momento de desespero, querer contato com os filhos. Aqui eu peço desculpa aos pais da Daniela, do Guilherme, da Stephanie, do Leonardo e da Melissa. Esse não é o momento de falarmos de religião, não, mas de amor, porque foram jovens que morreram”, disse ela.
Ela disse que muitas pessoas pediram o livro e que as mensagens dos filhos pedem que os pais se afastem dessa comoção, outras dizem que eles estavam no lugar certo. “Se eu soubesse que ia causar tanta, tanta polêmica, não teria usado isso, porque eu não quero fazer exibicionismo, eu não preciso disso.”
Ela criticou ainda a exibição de imagens de corpos durante o júri, chamando de apelativo.
Quatro réus são acusados por homicídio e tentativa de homicídio simples por dolo eventual na tragédia da Kiss – os sócios, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão.
O caso foi desaforado de Santa Maria para Porto Alegre, depois que defesas questionaram formação de júri imparcial na cidade onde boa parte da população foi afetada pelo fato. Bonilha foi o único que não pediu a mudança.
Iniciado no dia 1º de dezembro, o júri pelas mortes na Kiss é o maior do Judiciário gaúcho. No início da tarde, as defesas falarão novamente, antes que jurados se reúnam na chamada sala secreta para responder a questionários sobre a responsabilidade dos réus em sete casos de homicídio e sete casos de tentativas.
O número foi definido pelo juízo devido ao cálculo estimado de tempo que levaria para julgar o caso de cada uma das vítimas apontadas na denúncia em separado. O juiz Orlando Faccini Neto disse que, por uma estimativa feita por ele, seriam cerca de 28 dias, sem tempo para refeições ou sono.
Por Fernanda Canofre